Longas cartas ao poeta do povo

Um nervosismo comum de estreia esteve presente na mesa inaugural da Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, que completa – e comemora – sua décima edição sem vergonha de confetes. Afinal, é difícil imaginar um homenageado mais popular que o poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade, cujo nascimento faz 110 anos em outubro.

Os 850 lugares da Tenda dos Autores estavam tomados de um público feliz por estar na simpática cidade fluminense. Mas a ‘torcida-plateia’, que aqui raramente joga contra, precisou ter certo jogo de cintura para atravessar a opção dos integrantes da primeira conferência do evento: uma explanação dos críticos e escritores Silviano Santiago e Antonio Cicero inteiramente lidas do papel. 

Antes da fala dos escritores, o jornalista Miguel Conde, curador do evento, e o escritor Luis Fernando Verissimo introduziram brevemente a Flip. Conde justificou a escolha de Drummond com o argumento de que o mineiro é “um dos poetas mais lidos, discutidos e apropriados pelos novos escritores, um poeta de tempo presente”.

Luis Fernando Verissimo
Luis Fernando Verissimo, tímido confesso, arrancou risos da plateia ao narrar suas gafes na Flip. (foto: Thiago Camelo)

Verissimo, por sua vez, contou, de modo tímido, uma anedota que arrancou risos da plateia: a história justamente de como, por timidez e nervosismo, ele cometeu em 2008 uma série de gafes em sua fala na feira. Agora, segundo ele, era hora de se redimir e dar boas-vindas.

Textos longos e lidos

Silviano Santiago, autor de ensaios como O entre-lugar do discurso latino-americano (1971) e Uma literatura anfíbia (2002), assumiu o microfone e avisou que leria um texto. E que texto! Longas páginas, à moda mesmo de um ensaio, foram visitadas e contaram a história do século 20 aos olhos de Drummond. Uma especial atenção foi dada à dicotomia presente na obra do poeta de Itabira, que ora fincava o pé no regional, ora abraçava o mundo cosmopolita. 

Santiago: Drummond, “o nosso Proust mineiro”

Numa leitura crítica de Santiago, Drummond era um poeta que navega entre a rebeldia e a mansidão, entre as opções políticas marxistas e o regresso ao núcleo familiar. Um poeta do nosso tempo sim, como disse o curador Miguel Conde, mas que convivia com “um futuro no passado”. “O nosso Proust mineiro”, disse Santiago.

Antonio Cicero também optou por ler um texto. No entanto, em vez de traçar um longo panorama da poesia de Drummond, preferiu se deter, verso a verso, em um poema do mineiro: ‘A flor e a náusea’, publicado em 1945 num dos livros mais celebrados de Drummond, A rosa do povo. Para Cicero, um poema político, que joga luz sobre as ideias marxistas de Drummond, sobretudo a reificação – ou coisificação – do homem.

Cicero: crítica à sociedade “com tempo preso”

“Preso à minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cinzenta; melancolias, mercadorias espreitam-me”, diz os primeiros versos de Drummond lidos por Cicero, que em alguns momentos ‘congelou’ a leitura do poema para criticar a sociedade da comunicação “automatizada” e sem tempo livre. “Com tempo preso”, afirmou.

No fim, aplausos contidos, como os conferencistas. Poderia ser ovação, mas foi um começo com a cara da propalada timidez de Drummond.

Confira a cobertura iconográfica da Flip

 

A Ciência Hoje está na Flip representada pelo ‘sobreCultura’, suplemento trimestral da revista que em julho chegou ao seu nono número. O aniversário de 10 anos da feira de Paraty era o pretexto de que precisávamos para inaugurar o espaço on-line do caderno. Na prática, isso significa que o leitor não precisará esperar três meses para ler textos do ‘sobreCultura’. Publicaremos a partir de agora, no nosso site, material inédito sobre vários campos das humanidades, seguindo a proposta original do suplemento.

Thiago Camelo
Ciência Hoje On-line