Mais que inspiração, uma presença

Machiavel e o Brasil: assim foi denominado o primeiro livro de Octavio de Faria. Publicado em 1931, pela editora Schmidt, obteve grande repercussão na época, a ponto de ter sido reeditado dois anos depois. O autor era ainda estudante de direito quando escreveu esse estudo sobre o país. Ao inscrever Maquiavel já no título, declarava sua fonte de inspiração e o tema de sua obra. Definiu sua análise, tal como ensinara o mestre, como um ato de coragem e como uma investida contra vários preconceitos. A coragem resultava do fato de “dizer as coisas como elas lhe parecem ser, como muitos pensam, mas não ousam dizer, senão em particular”. O ataque a preconceitos justificava-se como condição para que se fizesse um diagnóstico realístico e, em decorrência, se concebessem soluções capazes de alterar aquela realidade.

Tais qualidades – coragem e investida contra preconceitos – apoiavam-se nos ensinamentos de Maquiavel. Faria, pensador católico nascido no Rio de Janeiro em 1908, encontrava em O príncipe, escrito em 1513, os fundamentos para a construção de uma imagem realística da sociedade e do Estado. Maquiavel descrevera o desequilíbrio que marcara o Renascimento italiano. Octavio de Faria se propunha a traçar o desequilíbrio brasileiro de sua época. 

Segundo Octavio de Faria, não teria ocorrido entre nós um processo civilizatório, formador da nacionalidade e fomentador de um país com expressão mundial

Na leitura de Octavio de Faria sobre Maquiavel, o desequilíbrio retratado pelo florentino se manifestava na imoralidade, na intriga, na usurpação, na baixeza moral, no vício. Para conseguir a estabilidade seria necessário impedir que a sociedade percorresse seu curso natural. Seria imperiosa uma intervenção, ou seja, um ato deliberado. Daí afirmar que só a política, ou, mais precisamente, o poder seria capaz de trazer a ordem, dominando a anarquia, esta sim natural.

Esses corolários orientam a interpretação octaviana sobre o Brasil desde a época colonial até a Primeira República. Sua análise descreve um país dominado pelo mais absoluto acaso. Em vez de uma nação, afirmava ele, havia um aglomerado de indivíduos. O atraso se revelaria em todos os aspectos: econômico, social e político. Em síntese, concluía, não teria ocorrido entre nós um processo civilizatório, formador da nacionalidade e fomentador de um país com expressão mundial. “São três séculos de inação, de preguiça, de submissão ao clima e às condições de transporte ainda muito rudimentares.”

Estado tutelar

Esse diagnóstico tinha pontos de convergência com o pensamento autoritário que se formou a partir da segunda década do século 20 e conquistou hegemonia após a Revolução de 1930. Os ideólogos de então, críticos do modelo de 1891, compartilhavam o ataque ao liberalismo, ao capitalismo. Teorias anti-iluministas, anti-individualistas e anti-utilitaristas exerceram forte influência. Em decorrência, a solução amplamente defendida sustentava a necessidade de um Estado tutelar. 

bandeira brasileira
À imagem de ‘O príncipe’, que descreve o desequilíbrio que marcou o Renascimento italiano no século 16, Octávio de Faria se propôs a traçar o desequilíbrio brasileiro de sua época. (foto: Sxc.hu)

Isso não significa dizer que não houvesse divergências. Ao contrário, no interior dessa ampla corrente antiliberal, as diferenças existiam e tornaram-se cada vez mais claras. Tais discordâncias se explicitavam nas distintas concepções sobre os mecanismos vistos como imprescindíveis para o fortalecimento do Estado e, sobretudo, nos espaços admitidos para a manifestação e organização dos interesses da sociedade civil. Naquele embate político-ideológico acabou por se impor o autoritarismo de tipo desmobilizador. 

Em sua crítica ao liberalismo republicano, Octavio de Faria acentuava traços de natureza moral

Oliveira Vianna converte-se no ideólogo do Estado Novo, transformando-se no mais importante intelectual da primeira metade do século 20. Como consequência, outras propostas e grupos perderam força. A situação de vencido na arena de poder implicará o confinamento de todos aqueles que, embora autoritários, não concordavam inteiramente com o ideário que poderia ser retirado, especialmente, do autor de Populações meridionais do Brasil e de O idealismo na Constituição, obras que Oliveira Vianna publicou em 1920. Sublinhe-se que após a Revolução de 1930, ele ocupou postos centrais na administração pública.

É exatamente na condição de perdedor que se encontrará Octavio de Faria e seu grupo – que tinha, entre seus maiores expoentes, Jackson Figueiredo e Tristão de Athayde – alinhado à reação espiritualista. Essa corrente, em sua crítica ao liberalismo republicano, acentuava traços de natureza moral.

Interpretação heterodoxa

Mas voltemos ao Maquiavel de Octavio de Faria. Trata-se, sem dúvida, de uma interpretação que especialistas julgariam próxima à heterodoxia. Na ótica de Octavio de Faria, os ensinamentos de Maquiavel levam à valorização da política e a uma análise da realidade tal como ela é, e não como se gostaria que ela fosse. 

arena
Os ensinamentos de Maquiavel levam a avaliar a realidade como ela é: uma situação de desordem, sobretudo nos aspectos morais. Essa análise leva Faria a reclamar por uma regeneração que ora dará ao Estado poderes para tal, ora colocará a solução fora da arena pública. (foto: D. Swift/ Wikimedia Commons – CC BY 2.5)

Essas proposições levam o pensador católico a identificar a realidade de sua época como uma situação de desordem. Mas essa percepção resulta, contudo, de um peso acentuado nos aspectos morais. A imprecação contra a imoralidade leva-o a reclamar por uma regeneração que ora dará ao Estado poderes para tal, ora colocará tal solução fora da arena pública, já que é de natureza privada. 

Além desse aspecto, segundo a leitura octaviana, Maquiavel distingue o indivíduo da massa. Todavia, ao privilegiar esse aspecto, Faria conferirá a esse indivíduo todas as características do personalismo próprio do neotomismo. 

Maquiavel, mais do que inspiração, é uma presença. Uma presença obrigatória, mesmo se não reconhecida como tal

Esse “homem de exceção” saberia reconhecer o valor do mundo sobrenatural. A distinção entre o plano religioso e o político levaria a se localizar o reino da moral dentro de cada consciência, num círculo de diâmetro maior, subordinando, assim, a política ao plano espiritual. Nessa concepção, caberia ao mecanismo moral assegurar o bom funcionamento do plano temporal, orientando as regras de caráter político, dessa forma impedindo que o indivíduo dê vazão às suas más qualidades.

A despeito das limitações e críticas possíveis à interpretação que Octavio de Faria faz de O príncipe, é inegável que o pensador católico contribuiu para a divulgação de Maquiavel em um momento de nossa história em que sequer havia tradução para o português das obras do autor florentino.

Hoje, passados tantos anos e, mais importante ainda, com a criação e consolidação de cursos de ciências sociais e o desenvolvimento da ciência política, poucos discordariam de que Maquiavel é o fundador da análise realista, da autonomia da esfera do político, dos paradigmas que ao descartar os idealismos nos impõem a análise da política como ela é. Maquiavel, mais do que inspiração, é uma presença. Uma presença obrigatória, mesmo se não reconhecida como tal. Como expresso na lápide de seu túmulo: Tanto nomini nullum por elogium (Nenhum elogio está à altura de tão grande nome).  

Maria Tereza Aina Sadek
Departamento de Ciência Política
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Universidade de São Paulo