Quando um jovem indígena da etnia Xerente, no Tocantins, conversa com um ancião sobre material escolar, pode haver uma pequena confusão. O ancião provavelmente fala ‘haisuka’ quando se refere a papel e ‘ikuikreze’ para falar de lápis. Já o jovem deve usar, respectivamente, as palavras ‘papé’ e ‘rápi(s)’ para designar esses objetos.
Não é difícil perceber que as palavras utilizadas pelo jovem são tiradas do português ‘papel’ e ‘lápis’. Essa incorporação de termos de outra língua com leves modificações na fonética da palavra é chamada de ‘empréstimo fonológico’, um dos quatro tipos de empréstimos linguísticos observados na língua xerente.
Além de ‘papé’ e ‘rápi’, há outras palavras faladas por índios jovens que pertencem originalmente à língua portuguesa. “O contato mais intenso dos jovens Xerente com as cidades faz aumentar bastante o repertório de palavras em português”, afirma a linguista Sílvia Lúcia Braggio, do projeto Línguas Indígenas Brasileiras Ameaçadas, da Universidade Federal de Goiás (Liba-UFG).
“Como esse processo é muito rápido, muitas vezes não há tempo de novas palavras ou conceitos passarem pelo ‘filtro’ da língua. Assim, o léxico dos índios mais velhos torna-se diferente daquele empregado pelos mais novos”, explica ela.
Juntamente com outros integrantes do Liba e com o índio xerente Bonfim Sizdazê, Braggio fez uma conferência ontem (12/7) pela manhã na 63ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, que acontece em Goiânia até sexta-feira.
Pode emprestar?
A diferença principal entre a incorporação de novos termos e conceitos entre os mais jovens de uma etnia – que têm mais contato com o português – e os mais idosos é a forma de empréstimo linguístico; quer dizer, a maneira como cada grupo importa de outra língua palavras ou ideias semânticas.
Há também o empréstimo de conteúdo semântico (ou empréstimo por criação). É o caso da palavra ‘haisuka’, que designa papel. Literalmente, ela significa ‘folha para escrever’. ‘Ikuikreze’, utilizada para fazer referência ao lápis, significa ‘coisa com que a gente escreve’. Esse é o tipo de empréstimo mais utilizado entre os idosos da etnia Xerente para construir palavras, o que acaba criando uma divergência entre o seu vocabulário e o dos mais jovens, que utilizam outros empréstimos linguísticos.
Um dos empréstimos linguísticos mais curiosos, no entanto, é o chamado loanblend. Ele acontece quando uma parte da palavra vem de outra língua e mistura-se com construções do idioma original. Um exemplo é a palavra hesukapitazƐ. ‘Haisuka’ significa papel e ‘pita’ vem do verbo ‘pintar’, em português. Empiricamente, a palavra designa um lápis de cor, mas literalmente significa ‘pintador de papel’.
- Exemplo de ‘loanblend’, quando parte da palavra vem de outra língua e se mistura com a original. O significado literal de kuƐnipkrai é ‘dedos de colher’ e designa ‘garfo’ no idioma xerente. (imagem: Sofia Moutinho)
Finalmente, existe o empréstimo direto – que é exatamente o que a palavra sugere. A palavra em português insere-se na língua sem qualquer alteração fonética. É o caso, por exemplo, de ‘soru’, ‘livru’ e ‘seis’.
Apesar de o empréstimo de palavras ser um fenômeno comum em qualquer língua, no caso do xerente ele tem um significado especial. Segundo a Unesco, essa é uma língua gravemente ameaçada, com cerca de 2.569 falantes. “No entanto, mais importante do que o número de falantes é sua relação com o português”, atenta Braggio. No caso dos Xerente, essa relação pode ser danosa.
Assista a uma entrevista com Bonfim Sizdazê, professor indígena xerente
Isabela Fraga
Ciência Hoje/ RJ
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