Nem tanto ao céu, nem tanto ao inferno

Gramática perfeita é essencial para assegurar uma grande carreira científica? A questão foi colocada por Morgan Giddings no blogue Naturally Selected (em português, Selecionado Naturalmente, um jogo de palavras com a teoria da evolução), da revista The Scientist.

Giddings, que tem doutorado e é pesquisadora na área de bioinformática, cortou na própria pele para extrair o conteúdo da coluna. Levantou a questão depois que um internauta deixou mensagem dizendo que os conselhos dela sobre os três ‘pecados mortais’ na redação de um projeto de pesquisa não deveriam ser levados em consideração porque a gramática do texto era deficiente.

A partir daí, Giddings passa a desfilar seus argumentos, contra e a favor. Começa dizendo que gramática (inclua-se aqui ortografia, por favor) pode ser corrigida por um dos milhares de revisores profissionais do mercado. E que o importante, na hora de escrever um projeto de pesquisa, por exemplo, são ideias originais e um bom programa de pesquisa. Perfeito.

Divagações. O problema é que gramática e ortografia que assassinam a língua acabam causando má impressão em quem lê – é a opinião deste jornalista; rótulos, manuais, instruções etc. com erros crassos desmerecem o produto, por melhor que ele seja.

Giddings toca em um ponto crucial. Gramática e ortografia excepcionais não são sinônimo de boa escrita. E vice-versa

Sabemos que fabricantes gastam, às vezes, milhões de unidades monetárias para fazer pesquisa, inovação e propaganda, mas não são capazes de desembolsar centenas dessas unidades para fazer a revisão de um rótulo ou uma caixa – isso vale para multinacionais, que deveriam (mas não o fazem) respeitar a língua do país em que estão.

Voltando. Giddings toca em um ponto crucial. Gramática e ortografia excepcionais não são sinônimo de boa escrita. E vice-versa.

Argumentando: pegue uma coletânea de contos de Machado de Assis (1839-1908), um dos maiores escritores mundiais nesse gênero de literatura, troque todos os ‘s’ por ‘ç’ e todos os ‘x’ por ‘ch’. Percebeu? A trama, a construção das personagens, a temática… tudo continua muito bom.

Experiência própria

Chegam à Ciência Hoje textos que literalmente ignoram as boas normas do vernáculo, mas com conteúdo interessante, leitura fluida, bom roteiro, excelente argumentação… Enfim, bem escritos.

Já outros, em português irrepreensível, não têm qualquer dessas qualidades. São impenetráveis. Pior: a estrutura das frases, em português camoniano, compromete a inteligibilidade. São textos talhados com finura para não serem lidos por alguém que não tenha paciência que, no limite, tenda ao infinito.

Assim, nem tanto ao céu, nem tanto ao inferno. O melhor dos mundos – para usar outro chavão – é unir clareza, simplicidade, precisão e concisão – esta última de extrema importância para cientistas. E, se possível, gramática e ortografia decentes.

Cássio Leite Vieira
Ciência Hoje / RJ