No mundo dos animais

Não faltam, no Brasil, críticos e estudiosos de literatura que se interessaram por investigar, sob diferentes ângulos, a questão da animalidade. O que diferencia Maria Esther Maciel, professora de teoria literária e literatura comparada da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), é o fato de ela ter se mobilizado para ampliar o estudo do tema entre nós.

Escritora quer preparar um livro de contos só sobre animais e se deter no estudo de personagens caninas na literatura

Em 2007, decidida a arriscar-se nesse campo, deu início ao projeto ‘Zooliteratura contemporânea: animais na literatura’. No ano seguinte, publicou O animal escrito – um olhar sobre a zooliteratura contemporânea , em que esboça as principais vertentes zooliterárias do passado e do presente no mundo ocidental. Em 2011, organizou a coletânea Pensar/escrever o animal: ensaios de zoopoética e biopolítica . “Nesse livro, a literatura aparece como principal referência, mas não a única”, diz. Ainda em 2011, organizou na UFMG o colóquio internacional  ‘Animais, animalidade e os limites do humano’ e preparou um número especial do Suplemento Literário de Minas Gerais, intitulado ‘Animais escritos’, com ensaios, contos e poemas.

Na universidade, ministra disciplinas e orienta estudantes com enfoque na zooliteratura. Esther também se dedica ao trabalho de criação – publicou livros de poesia e ficção, entre eles o romance O livro dos nomes , finalista do Prêmio Portugal Telecom de Literatura em 2009.

Ao concluir o estágio sabático que realiza atualmente na Universidade de São Paulo, pretende preparar um livro de contos só sobre animais e se deter no estudo de personagens caninas na literatura. “Tenho especial predileção por cães”, revela, nesta conversa com o sobreCultura+.

Maria Esther MacielsobreCultura: Quando os estudos sobre ‘animais e literatura’ passaram a ser feitos de modo sistemático no Brasil?
Maria Esther Maciel
: Só recentemente; antes, havia trabalhos esparsos. Além disso, a abordagem se circunscrevia à visão do animal como símbolo, metáfora ou alegoria do humano, mais restrita à análise textual. Hoje, percebe-se uma ampliação desse enfoque, que deixa os limites do texto literário para ganhar um viés transdisciplinar, em diálogo com a filosofia, biologia, antropologia, psicologia. Aliás, esse entrelaçamento de saberes em torno da questão animal cresceu em várias partes do mundo, propiciando a difusão de um novo campo de investigação crítica denominado ‘estudos animais’. A literatura tem conquistado espaço importante nesse campo, graças sobretudo a escritores/pensadores como John M. Coetzee, John Berger e Jacques Derrida, que souberam aliar, de modo criativo, literatura, ética e política no trato da questão animal.

Como a senhora explica esse interesse crescente pelo tema?
Há um conjunto de fatores. Impossível não considerar as preocupações de ordem ecológica, que movem a sociedade contemporânea. Há também uma tomada de consciência mais explícita por parte de escritores, artistas e intelectuais dos problemas éticos que envolvem nossa relação com os animais e com o próprio conceito de humano. Além disso, a noção de espécie e a divisão hierárquica dos viventes têm provocado discussões ético-políticas relevantes, que acabam por contaminar as artes e a literatura. A isso se soma a tentativa, por parte dos humanos, de recuperar sua própria animalidade, que por muito tempo foi reprimida em nome da razão e do antropocentrismo.

Historicamente, que autores se interessaram pela questão da animalidade?
Embora alguns pensadores do mundo antigo tenham refletido sobre os animais e a animalidade, Michel de Montaigne foi o ponto de partida para uma abordagem nova e instigante da questão. Em ensaios como ‘Da crueldade’ e ‘Apologia de Raymond Sebond’, de 1580, ele questionou a superioridade do homem em relação às demais espécies, além de ter contribuído para a constituição de uma ética e uma política modernas sobre as relações entre homens e animais. Seu pensamento influenciou não só escritores como Machado de Assis e John Coetzee (que escreveu romances contundentes, como A vida dos animais e Desonra), mas também filósofos como Derrida, autor do já clássico O animal que logo sou. Em outro viés da filosofia, Jeremy Bentham e Peter Singer destacam-se como referências importantes. No Brasil, creio que Benedito Nunes foi pioneiro no tratamento do tema a partir da articulação entre literatura, filosofia e antropologia. Já Eduardo Viveiros de Castro inaugurou uma linha de pensamento na abordagem do tema da animalidade, sob o prisma das culturas ameríndias. Na área de estudos literários, Silviano Santiago foi um dos primeiros a tratar do tema sob uma óptica mais contemporânea, sobretudo ao investigá-lo na obra de Clarice Lispector.

Que autores de textos literários podem ser destacados como fundadores de uma linha temática que enfatiza a animalidade e as relações homem-animal?
De Esopo até nossos dias, os animais fizeram parte do imaginário poético-ficcional do Ocidente. Na maioria das vezes, antropomorfizados ou convertidos em representações alegóricas, a serviço de ideários religiosos, morais ou políticos. A grande virada veio após Charles Darwin, que evidenciou as origens animais do ser humano.

“A grande virada veio após Charles Darwin, que evidenciou as origens animais do ser humano”

No Brasil, Machado de Assis pode ser considerado um dos primeiros a discutir as relações entre humanos e não humanos. Ele chegou a criticar as touradas, as práticas de vivissecção em laboratórios e a exploração da força animal no trabalho, além de mostrar simpatia pelas sociedades protetoras dos animais. Fez uso paródico da fábula, ao dar voz a animais, como no conto ‘Ideias de canário’ (em que a ave é bem mais sábia do que o ornitólogo que a estuda) ou na crônica ‘Conversa de burros’ (em que relata uma conversa entre dois burros de carga sobre a possibilidade de ficarem livres da exploração humana com a expansão do uso da tração elétrica nos bondes do Rio de Janeiro).

Machado também embaralhou, no romance Quincas Borba, as noções de humanidade e animalidade, a partir do jogo de identidades entre um homem e seu cão. Creio que ele abriu caminhos para que se inaugurasse uma linhagem de escritores preocupados com o universo zoo, como Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, João Alphonsus, Clarice Lispector e Carlos Drummond. No âmbito internacional, um marco é Franz Kafka, que inseriu em seus contos figuras animais que desestabilizam as bases do humanismo antropocêntrico. Destaco ainda Jack London, autor de O chamado selvagem e Caninos brancos. Poderia fazer uma lista de nomes, mas fico com esses por enquanto.

Por que é importante para a humanidade refletir sobre a animalidade?
Ao refletir sobre a animalidade, a humanidade pode repensar o próprio conceito de humano e reconfigurar a noção de vida. Por muito tempo, nosso lado animal foi recalcado em nome da razão e de outros atributos tidos como próprios do homem. Quem ler os tratados de filosofia e teologia escritos ao longo dos séculos verá que a definição de humano e humanidade se forjou à custa da negação da animalidade humana e da exclusão/marginalização dos demais seres que compartilham conosco o que chamamos de vida. Acho que os humanos precisam se reconhecer animais para se tornarem verdadeiramente humanos.

É possível identificar modos diferentes de ‘explorar’ a figura do animal na produção literária?
Na literatura brasileira, podemos falar de três momentos incisivos. No primeiro, está Machado de Assis, que escreveu no auge do racionalismo cientificista do século 19, quando os princípios cartesianos já tinham legitimado no Ocidente a cisão entre humanos e não humanos, e os animais eram vistos como máquinas. No século 20, a partir dos anos 30, autores como Graciliano Ramos, João Alphonsus, Guimarães Rosa e Clarice Lispector marcam um novo momento, ao lidar, cada um a seu modo, com as relações entre homens e animais sob um enfoque libertário, manifestando cumplicidade com esses outros viventes e a recusa da violência contra humanos e não humanos. Já os escritores do final do século 20 e início do 21 lidam com a questão dos animais sob o peso de uma realidade marcada por catástrofes ambientais, extinção de espécies, experiências biotecnológicas, expansão das granjas e fazendas industriais etc.

Como a senhora vê o futuro dos animais?
Pelo jeito como as coisas andam, preocupo-me com a possibilidade de os animais livres desaparecerem da face da Terra. Ficariam apenas os bichos criados em reservas e cativeiros, os expostos em zoológicos, os ‘produzidos’ em granjas e fazendas industriais para viver uma vida infernal e morrer logo depois, além dos animais domésticos, adestrados e humanizados ao extremo.

“Minha utopia é que a humanidade possa um dia fazer mea-culpa em relação aos crimes já cometidos contra os índios, os animais, a natureza”

Há quem diga que até mesmo estes estão fadados a desaparecer, dando lugar a animais-robôs, que já existem no Japão.

A humanidade tem destruído florestas, dizimado povos indígenas, exterminado espécies animais. Apesar da preocupação de ativistas com o destino do planeta, falta empenho político dos governos para frear essa destruição generalizada.

Minha utopia é que a humanidade possa um dia fazer mea-culpa em relação aos crimes já cometidos contra os índios, os animais, a natureza. Mas, pelo que vejo, essa questão continuará a ser um grande desafio ético e político para a nossa civilização.

Depois que Darwin, com a teoria evolucionista, tirou o homem do centro da criação e Freud, com a psicanálise, tirou o homem do centro de si mesmo, não seria de esperar que a humanidade tivesse uma relação mais amistosa e de respeito com as espécies viventes em geral?
É admirável que, em pleno século 21, o homem ainda viva na clausura de sua própria humanidade. Mas vejo mudanças no cenário contemporâneo. Tem crescido o interesse pela questão dos animais em vários setores da sociedade, e a ciência tem feito descobertas importantes em relação às faculdades cognitivas dos animais.

O Brasil, por ser um país com megadiversidade biológica, ampliou sua pesquisa em biologia vegetal e animal. Isso se deu também no âmbito dos estudos literários?
Ainda não há muitos grupos no Brasil voltados para essa questão. Na Universidade Federal de Santa Catarina há pesquisadores interessados no tema, mas não sei se já existe um grupo de pesquisa. Sei que há grupos afinados com estudos de ecocrítica na Universidade de Brasília e na Federal da Paraíba. Nesse caso, a abordagem se concentra nas relações entre literatura e meio ambiente. Os animais entram como um tópico entre outros. No exterior, vários grupos seguem diferentes linhas. Um dos maiores é o Minding Animals International , que surgiu na Austrália em 2009, durante um congresso multidisciplinar na Universidade de Newcastle. Há, ainda, o Animals & Society Institute, nos Estados Unidos, e o Oxford Centre for Animal Ethics, na Universidade de Oxford, Inglaterra. Um dos grupos mais interessantes, a meu ver, é o da Universidade de Paris 3, que desenvolve o Projeto Animot , mais voltado para a literatura e as artes.

Capa do livro
Ilustração da capa do livro ‘O animal escrito: um olhar sobre a zooliteratura contemporânea’, em que Maria Esther Maciel esboça as principais vertentes zooliterárias do passado e do presente no mundo ocidental. (imagem: divulgação)

A senhora coordena um grupo de pesquisa na UFMG. Como é esse trabalho?
Ainda não é um grupo formal, mas pretendo formalizá-lo tão logo possível. Há colegas interessados na discussão do tema e estudantes que o pesquisam. Trabalhamos também com professores de outras instituições brasileiras e com pesquisadores dos Estados Unidos, da Argentina, França e Inglaterra. O colóquio internacional ‘Animais, animalidade e os limites do humano’, que organizei com Julio Jeha, em 2011, rendeu frutos importantes. As comunicações dos alunos de mestrado e doutorado foram publicadas na revista Em tese e os trabalhos apresentados nas conferências e mesas-redondas saem em breve na revista Aletria, também editada pelo nosso programa de pós-graduação.

Suas pesquisas sobre animalidade a inspiraram no trabalho de criação literária?
Escrevi alguns textos ficcionais e pretendo preparar um livro de contos só sobre animais. Em meus dois livros de ficção, O livro de Zenóbia e O livro dos nomes, criei personagens animais e inseri referências ao mundo zoo em certas passagens. Zenóbia, a protagonista do primeiro romance, é bióloga. Ela reaparece no segundo, tratando de serpentes. Mas meus animais literários são sobretudo os cães.

Seus estudos sobre animalidade a influenciaram em seu modo de vida?
Não consigo desvincular o trabalho do meu modo de vida. Se cheguei ao tema dos animais, foi por causa do meu apreço por eles. Há anos não como carne, por causa da memória do tempo em que passava temporadas na fazenda do meu pai, no interior de Minas Gerais. Vivia perto de vacas, porcos, aves, cavalos, cachorros. Toda vez que via carne de vaca na mesa, me lembrava do olhar bovino. Já a visão da carne de porco me trazia a imagem dos porquinhos espertos e afetuosos com que eu brincava. Foi assim também com as aves, os coelhos e outros bichos. Como fui sempre muito tocada pelo olhar animal, decidi não comê-los mais. Ainda mantive peixes e frutos do mar, mas deixei de comer várias espécies ao saber de seus hábitos. Recuso também ovos de granja, em repúdio à situação absurda das aves nos espaços de confinamento das fazendas industriais. Meu projeto de vida, certamente influenciado por meus estudos, é parar de consumir também carne de peixe. Chegarei lá.

 

Roberto B. de Carvalho

Crédito da foto de Maria Esther Maciel brincando com sua cachorra Lalinha: Ricardo Maciel dos Anjos