Uma busca pelos arquivos dos jornais de 1953 revelará que a imprensa britânica foi mobilizada por vários eventos que renderam páginas e mais páginas de artigos. Entre eles estão a conquista do Monte Everest, em 29 de maio, e a coroação da rainha Elizabeth II, em 2 de junho. Será difícil, porém, encontrar qualquer menção à elucidação da estrutura em dupla hélice da molécula de DNA, descrita por James Watson e Francis Crick em artigo na Nature de 25 de abril.
Em 29/5/1953, o neozelandês Edmund Hillary e o nepalês Sherpa Tenzing
Norgay tornaram-se os primeiros a pisar no ponto culminante do mundo – o
Everest (ao centro), com cerca de 8850 m de altitude (imagem: JSC / Nasa)
No entanto, a História registrou 1953 como o ano da descoberta da estrutura do DNA — e não como aquele em que foi vencido o Everest. Quem aponta essa ironia é o britânico Robert Olby, historiador da ciência, professor da Universidade de Pittsburgh (EUA) e autor de um livro sobre a história da descoberta da dupla hélice. A convite da Fiocruz e do British Council, ele esteve em março no Brasil para realizar no Rio e em São Paulo três conferências, nas quais abordou o impacto da descoberta de Watson e Crick nos anos 1950.
Um levantamento feito pelo britânico mostra que, em 1953, a única menção à estrutura do DNA na grande imprensa britânica foi um breve texto no News Chronicle de 15 de maio. Nas publicações técnicas — como a Nature –, a dupla hélice seria abordada de forma mais sistemática. Mesmo assim, seria preciso esperar o ano de 1960 para assistir a uma explosão do número de artigos sobre DNA.
Número de artigos publicados na Nature entre 1950 e 1960 sobre DNA (em
laranja) e com menção específica à estrutura da dupla hélice (roxo). Fonte:
Robert Olby. Quiet debut for the double helix . Nature 421, 402 – 405 (2003)
No Rio, Olby explicou por que devemos comemorar esse cinqüentenário. “Vamos celebrar, mas vamos sobretudo discutir o que celebrar.” Ele reconhece a importante carga simbólica que hoje a dupla hélice encerra para biólogos e a sociedade em geral. Ele enxerga nessa representação simétrica e elegante uma função similar à dos totens — objetos em torno dos quais giram cultos e crenças de muitas tribos.
Para Olby, a popularidade da dupla hélice junto à opinião pública se deve também ao fato de o DNA ser um importante repositório da hereditariedade, capaz de se duplicar com exatidão. “A maneira como essa molécula foi desvendada e os personagens envolvidos contribuíram para ‘apimentar’ a história”, diz o britânico em artigo publicado em 23 de janeiro na Nature . Olby voltou ao tema no Brasil: “Há tantas descobertas chatas… Esta não é uma, e talvez por isso chame tanto a atenção.”
Para ele, porém, é um outro ponto o principal motivo de comemorações. “Devemos festejar esse cinqüentenário sobretudo pela importância do método investigativo que ele representa” — Watson e Crick identificaram a estrutura em dupla hélice do DNA após analisar uma imagem da molécula por difração de raios X realizada por Rosalind Franklin.
Seja qual for a razão, é fato que, em todo o mundo, festejam-se os 50 anos do artigo histórico de Watson e Crick. Mas por que a coroação da rainha ou a conquista do Everest ficaram para trás? É Olby quem conclui, em seu artigo na Nature : “o DNA é um assunto que continua sendo notícia, seja como ferramenta para o estudo da evolução, para a medicina forense ou como fonte de informação para a elaboração de novas drogas”.
Bernardo Esteves
Ciência Hoje on-line
24/04/03