“Entre os problemas de alto interesse teórico que os recentes avanços da história natural e da geologia têm trazido à tona, nenhum é mais importante, e ao mesmo tempo obscuro, do que aquele relacionado com a origem das espécies. Sobre este difícil e misterioso assunto um trabalho irá aparecer brevemente, escrito pelo Sr. Charles Darwin, como resultado de vinte anos de experimentos e observações em zoologia, botânica e geologia, através do qual ele foi levado à conclusão de que os processos que dão origem às raças e variedades são os mesmos que, em espaços de tempo muito maiores, produzem as espécies e, em espaços de tempo ainda maiores, dão origem a gêneros. A mim me parece que ele conseguiu, através de suas investigações e pensamentos, ter lançado alguma luz sobre as diversas classes de fenômenos que estão ligados às afinidades, distribuição geográfica e sucessão geológica dos seres vivos. Nenhuma outra teoria jamais conseguiu, e nem mesmo tem tentado, resolver esse problema”.
Com essas palavras, o livro Origem das espécies era anunciado sessenta dias antes de seu lançamento, em 1859, por ninguém menos que Sir Charles Lyell (1797-1875), o influente geólogo que gravitava o epicentro do poder político e econômico da nação mais industrializada da época.
A fumaça das chaminés já tinha deixado de brotar da lenha, artigo então escasso, para dar lugar ao carvão mineral. Os geólogos sabiam onde encontrá-lo e estimar a potencialidade de suas jazidas, o que justificava a distribuição de títulos honoríficos e até da nobreza aos emergentes geólogos.
O que se seguiu ao lançamento do anunciado livro é conhecido em termos gerais. Mas os detalhes que povoam o universo epistolar de seu autor iluminam o episódio, conferindo-lhe colorido especial. Muitos deles podem ser conhecidos neste A evolução.
Importância das cartas
As cartas tinham, àquela época, caráter diferente do que assumiram em épocas posteriores. É comum encontrar nas cadernetas de anotações de Darwin trechos que depois foram transcritos e remetidos na forma de cartas. A própria apresentação de sua teoria, originalmente, foi feita com a transcrição de uma carta a Asa Gray (1810-1888), seu correspondente americano.
Assim, as cartas eram documentos quase oficiais, que poderiam ser utilizados para comprovar a data de certo escrito. Isso explica, em certa medida, o zelo de Darwin pela guarda de cartas e de seus rascunhos, de onde frequentemente transcrevia fragmentos.
A seleção de cartas permite ter uma ideia das principais questões que se seguiram à publicação de Origem das espécies. É interessante ver quais foram as razões de contrariedade, em especial dos amigos naturalistas, como Leonard Jenyns (1800-1893), que o conhecia desde 1828 e viu seus primeiros passos na Universidade de Cambridge.
Na verdade, ele é que deveria ter viajado no Beagle, mas, por uma série de circunstâncias que descreveu em sua autobiografia, concordou com seu cunhado, o professor de botânica John Henslow (1795-1861), a indicar o nome de Darwin.
A primeira carta do volume é justamente dele, e não poderia de maneira alguma ser considerada hostil. Mas a discordância estava lá, não exatamente sobre a teoria da evolução, mas sim em relação à teoria da ascendência comum. São duas teorias diferentes, e que concordavam apenas parcialmente com as idéias vigentes dos evolucionistas lamarquistas.
Estes viam a evolução como aperfeiçoamento e utilizavam o registro fóssil como testemunho da gradual aparição das formas cada vez mais ‘perfeitas’, em direção aos mamíferos, ideia contra a qual Darwin tinha se insurgido.
Controvérsias
A outra objeção parece nitidamente na forma de uma previsível reação de um ministro anglicano, responsável por uma paróquia e seus fiéis – aliás, essa é a principal justificativa que ele apresentou em sua autobiografia para não aceitar o convite para se juntar ao Beagle: não poderia abandonar sua paróquia tendo como justificativa uma simples viagem!
O que queria dizer a frase ‘luz será lançada sobre a origem do homem e sua história’? Seria ela uma declaração de que a espécie humana era apenas um orangotango aperfeiçoado? E seu senso moral, teria ele sido objeto apenas da seleção natural?
Afinal, se Origem das espécies não foi ‘escrito’ pensando no ser humano, certamente foi ‘lido’ por quem estava pensando no ser humano. Não seria demais notar que em 1863 Charles Lyell publicaria The geological evidence of the antiquity of man [A evidência geológica da antiguidade do homem] e logo no ano seguinte galgaria um degrau na aristocracia britânica, ganhando o título de ‘Barão’.
E Darwin não tinha escrito aquela frase de maneira desavisada. Ele tinha selecionado extensos trechos de obras como a de James C. Prichard (1786-1848), Researches into the physical history of mankind [Pesquisas sobre a história física da humanidade], deixando em seu exemplar indicações para incorporação no capítulo sobre seleção natural, o que acabou por não fazer.
Mesmo assim, ele diz a outro correspondente, Alfred Wallace (1823-1913), seu coautor de outra teoria – a da seleção natural – que tem pouco material sobre o ser humano, ao cumprimentá-lo sobre seu polêmico artigo em 1864 no qual ele discorria sobre o futuro da humanidade sob a ótica da seleção natural.
Controvérsias
Ao mesmo tempo, salta aos olhos seu argumento, em maio de 1860, de que trabalhava em sua obra ‘maior’, como confidencia a Wallace. Afinal, Origem das espécies era um livro ‘menor’, pelo menos no sentido físico: era um resumo de uma obra da qual ele tinha retirado os dois primeiros capítulos a fim de desenvolvê-los e publicá-los na forma de um livro mais técnico, com referências bibliográficas e outros detalhes dos quais Origem carecia.
Assim, em 1868 saía publicado Variation of animals and plants under domestication [A variação de animais e plantas sob domesticação], o tal livro ‘maior’, que (ainda) não mereceu uma tradução para o português. Talvez sua extensão (dois volumes) explique ao mesmo tempo a satisfação de Darwin e o desânimo dos editores brasileiros.
Mas a leitura das cartas permite perceber também ausências. Não se encontram referências às ilhas Galápagos e aos ‘tentilhões de Darwin’, por vezes apresentados como sua grande descoberta ou grande insight, o que não corresponde à realidade.
Pudera! Na cabine do Beagle, Darwin dispunha do livro de um polêmico naturalista francês, Bory de Saint Vincent (1778-1846), que dizia serem as ilhas fábricas de espécies, que abasteceriam continuamente os continentes com biodiversidade!
Sua certeza provinha do conhecimento dos endemismos das ilhas do Índico e de Madagascar. Darwin, depois de retornar da viagem do Beagle, teve muito trabalho para explicar o que tinha encontrado no continente, não nas ilhas, cujos endemismos eram mais do que conhecidos.
Na verdade, os tentilhões passaram a ser os “famosos” pássaros de Darwin apenas em 1947, quando o ornitólogo britânico David Lack (1910-1973), o pupilo de Julian Huxley (1887-1975), publicou seu famoso livro Darwin’s finches [Tentilhões de Darwin], baseado na expedição ao arquipélago em 1938-9. Mas a seleção mostra que, para Darwin, essa centralidade das ilhas Galápagos em sua teoria seria uma grande surpresa!
Frederick Burkhardt, Samantha Evans e Alison Pearn (orgs.)
São Paulo, 2009, Editora Unesp
346 páginas – R$ 59,00
Tel.: (11) 3242-7171
Texto publicado originalmente no número 9 do Jornal de Resenhas
Nelio Bizzo
Professor na Faculdade de Educação da USP
Autor de Darwin: Do telhado das Américas à teoria da evolução (Odysseus).