O humano consciente

O neurocientista português António Damásio, autor de E o cérebro criou o homem – livro lançado no Brasil em 2011 pela Companhia das Letras – faz parte da geração de ‘estudiosos do cérebro’ que entendem a importância de divulgar a ciência de modo mais palatável para o público não especializado. Grupo representado por nomes como o neurologista britânico Oliver Sacks e os neurocientistas brasileiros Roberto Lent, Suzana Herculano e Miguel Nicolelis. É, aliás, ao menos curioso, que tanto Nicolelis quanto Damásio tenham escrito suas últimas obras primeiro em inglês para, depois, traduzi-las para a língua materna.

O desejo de Damásio é estudar a origem do self e o caminho percorrido por essa entidade dentro do cérebro

Falar da tradução do livro de Damásio é importante, pois o inspirado título em inglês de E o cérebro criou o homem diz mais sobre as intenções da obra do que a escolha feita na versão brasileira. Self comes to mind: constructing the conscious brain – algo como ‘Self vem à mente: construindo o cérebro consciente’ – reproduz de forma mais clara o desejo de Damásio de estudar a origem do self e o caminho percorrido por essa entidade dentro do cérebro.

E o que seria o self?

Segundo Damásio, “a consciência é uma mente dotada de um possuidor”. A mente seria responsável por tudo – por todas as faculdades do cérebro –, menos uma: a incrível capacidade que permite que o corpo – “parte essencial ou principal de uma estrutura material ou abstrata”, em definição do dicionário – seja “o nosso corpo e o de mais ninguém”. O cientista chama de self – o ‘ego’, o ‘eu’ – essa entidade que possibilita reconhecer a nós mesmos como a voz no comando.

O self – o ‘ego’, o ‘eu’ – é a entidade que possibilita reconhecer a nós mesmos como a voz no comando

Diferentemente do trabalho de alguns de seus pares, a divulgação científica de Damásio dá vasta abertura ao que é abstrato, ao quase metafísico, àquilo que é caro, portanto, a escritores, filósofos e pensadores. Aliás, mais uma vez, Damásio usou um escritor para, ora concordar plenamente, ora discordar com elegância, de suas ideias. No passado recente, por exemplo, tomou Descartes como mote para desconstruir a ideia de que o homem só existe porque pensa racionalmente e consegue sublimar as emoções.

Em E o cérebro criou o homem, Damásio chama para a conversa o pensador e filósofo estadunidense William James. Dessa vez, ele concorda com a maioria das opiniões de seu parceiro das humanidades. Sobretudo quando James fala da importância do sentimento para delimitar aquilo que é, ou não, próprio do self . O sentimento, diz Damásio, funciona como um marcador somático que, ao se juntar ao fluxo mental e se justapor ao estímulo que o desencadeou, permite que o sujeito reconheça aquela emoção como parte de sua individualidade – de seu ‘eu’. 

Daí em diante, o livro percorre uma trajetória vertiginosa em busca de onde, afinal, surge a primeira fagulha do self no cérebro e em que momento a consciência – mente + self – se torna necessária para o ser humano. No livro, a resposta para a última questão vem de uma longa investigação evolutiva sobre os processos mentais cuja conclusão é: a consciência é uma necessidade evolutiva, pois somente com a aparição do self  – da mente consciente – seria possível ter bases para construir e fazer surgir memórias amplas, raciocínio, imaginação, criatividade e linguagem. Sem esses instrumentos, não existiria a cultura e, sem cultura, o homem não evoluiria até aqui.

Capa: E o cérebro criou o homem

E aqui Damásio faz o seu tradicional movimento de tirar a ciência do pedestal: ele assume que a cultura é o lugar em que não somos inteiramente regulados pela nossa biologia. E, de alguma forma, o que acontece no nosso exterior – o que acontece ‘na cultura’ – pode voltar para o homem e mudar o modo como o self mais primitivo se forja.

E onde no cérebro, afinal, está esse self? Segundo Damásio, esta é a proposta realmente nova do livro. Antes, boa parte dos cientistas e ele próprio acreditavam que o self estaria no córtex cerebral, camada mais externa do cérebro, rica em neurônios e responsável pelas atividades mais complexas, como memória, interpretação e processamentos simbólicos.

Mas, a partir de E o cérebro criou o homem, a ideia de Damásio começa a mudar. Por meio de reflexões teóricas e com auxílio, sobretudo, de imagens do crânio humano captadas por equipamentos sofisticados de ressonância magnética em seu laboratório na Califórnia, nos Estados Unidos, o neurocientista passa a defender que o self ’nasce’ em uma região mais ‘primitiva’ (ou primordial) do cérebro: o tronco cerebral, responsável pela regulação das funções do interior do corpo, como frequência cardíaca, pressão arterial e movimentos dos músculos involuntários.

Pois bem. Para Damásio, por ser uma região tão intimamente ligada ao corpo – é ele que faz a máquina funcionar –, o tronco cerebral seria a primeira base para o cérebro fazer mapas neurais “dos sentimentos mais primitivos”, aqueles que se propagam todos os dias “dentro do nosso corpo”; e seria possível, ou altamente provável, que essas emoções primordiais iniciadas no tronco cerebral – emoções que não fazem parte de uma “consciência ampliada” – dialogassem o tempo todo com as camadas mais sofisticadas do cérebro, servindo como primeiro modelo de mapa neural e, também, alimentado-se do que as camadas mais sofisticadas apreendem dos estímulos do exterior.

Por ser uma região tão intimamente ligada ao corpo, o tronco cerebral seria a primeira base para o cérebro fazer mapas neurais “dos sentimentos mais primitivos”

E, é bom lembrar, essas camadas mais sofisticadas seriam, justamente, as responsáveis pelo ‘produto final’ da espécie humana: a cultura. Cultura – e aqui se apresentam o ‘Damásio humanista’ e a mais bonita ideia do livro –, como já dito, capaz de transformar o homem, num movimento permanente de fora para dentro e de dentro para fora.

Segundo Damásio, o corpo não agiria sozinho em sua autorregulação. Preconceitos, raciocínio, imaginação – tudo o que é próprio das instâncias mais sofisticadas do cérebro – interfeririam nas reações físicas mais primordiais, ainda que em um plano inferior.

Por isso, Damásio, em bela e longa entrevista para o jornal Público, de Portugal, diz que não vê “em que é que a abordagem biológica diminui a dignidade humana, antes pelo contrário”. E arremata: “Acho que, quando percebemos a beleza dessa vida nos pormenores mais pequenos e também no grande alcance dos grandes sistemas, passamos a ter muito mais respeito por aquilo que é a vida”.  

Opinião que faz jus ao livro – para muitos, a obra-prima desse neurocientista pra lá de humano.

Leia um trecho do livro no blogue da Companhia das Letras e assista à palestra em que, de modo didático, Damásio explica as principais ideias de seu livro

Assista aqui ao mesmo vídeo, com a opção de legenda em português.

E o cérebro criou o homem
António Damásio
São Paulo, 2011, Companhia das Letras
440 páginas – R$ 40

 

Thiago Camelo
Ciência Hoje On-line