O tráfico já era?

Na segunda-feira passada (22), estive com o cientista político e antropólogo Luiz Eduardo Soares. Especialista em segurança pública, ele já foi secretário de segurança do governo Garotinho (no Rio de Janeiro) e secretário nacional de segurança pública no início do governo Lula. Está envolvido no “projeto Tropa de Elite“, que conta com o famoso filme e – também – com o livro de sua autoria: o Elite da Tropa (1 e 2).

Luiz Eduardo Soares escreveu ontem à noite em seu blogue pessoal que não falaria sobre o assunto. E explicou por quê.

A minha conversa com ele, na segunda-feira, foi, especialmente, sobre a sua obra literária. O bate-papo sairá na primeira edição da revista Ciência Hoje de 2011.

“Eu acho que o tráfico já era como solução para o negóciodo tráfico, o modelo tal qual nós o conhecemos já era”

Porém, com a iminência dos ataques no Rio de Janeiro, foi impossível não tocar no assunto. Ainda não havia ocorrido a megaoperação na Vila Cruzeiro e o estado de histeria não tinha tomado, por completo, a cidade. Por isso, vale – e é muito importante – relativizar a data em que a entrevista foi feita. E saber que Luiz Eduardo Soares deu essas declarações no início desta semana. Segue, na íntegra, o trecho da entrevista em que ele fala sobre UPPs, novas políticas de segurança pública, milícias e, também, sobre os primeiros ataques ocorridos na cidade.

Ciência Hoje: Em algumasentrevistas, no livro e no filme, aparece a expressão “o tráfico já era, agora oproblema são as milícias”. Eu queria saber se não éousado falar isso, considerar que o tráfico já não tem tanto poder…

Luiz Eduardo Soares: Se você estivesse presente na entrevista em que foidito isso, ou se você tomar como referência essa frase no contexto em que ela éenunciada, você vai lá encontrar todos esses improvisos que eu vou falar paravocê que podem ter se perdido na edição do texto.

“Não se controla esse mercado. Se disciplina, se regula, masnão se controla. A guerra antidrogas é um imenso fracasso”

Se você considerar as dinâmicas criminológicas, dinâmicassocietárias e institucionais em curso no Rio de Janeiro, você verá que otráfico não tem futuro. Ou tem o futuro muito reduzido. E que a tendência dotráfico, como o vemos hoje, seja substituída pelo padrão internacional. Porrazões econômicas e por outras razões também. Mas principalmente pela razãoeconômica. E qual é o padrão internacional? É o padrão do varejoou nomadismo. Não é de controle territorial. Isso se tem em todo o mundo e semprevai ter, enquanto houver o proibicionismo e enquanto as drogas forem – imagino sempre – desejadas e cobiçadas porconsumidores. Enquanto houver consumo e produção, é impossível, em uma sociedadedemocrática, impedir que consumidores, produtores e intermediários se encontrem.

Não se controla esse mercado. Se disciplina, se regula, masnão se controla. A guerra antidrogas é um imenso fracasso. Não há dúvida nenhuma.

Filosoficamente para mim é injustificável o proibicionismo [das drogas] comotambém é insustentável praticamente. Essa modalidade varejista e nômade davenda e da negociação da droga ilícita éo momento reinante do mundo. Em algumas praças do Brasil você tem o modeloterritorializado, de domínio. Isso é muito caro e ineficaz. Isso é caro, evai custar cada vez mais caro. Você tem que manter um “pequeno exército”,recrutar, formar, contar com essas lealdades…. Você tem que se armarcrescentemente – e esse é um jogo que se autonomiza em relação as necessidadesimediatas, e isso tem um custo muito grande.

Você tem que disputar com outras facções o controle doterritório. E com a polícia você tem que negociar. E a polícia vem cada vezmais voraz, com mais fome. E acaba fazendo com que o tráfico cumpra a partemais pesada e assuma o risco. E à polícia sobra o lucro líquido, o lucro semcusto.

Esse é um arranjo incompatível com a urbanização, com aorganização da sociedade, com o aprofundamento da democracia. Começa a haver uma cobrança da sociedade em relação às instâncias públicas, uma cobrança por um mínimode responsabilidade, um mínimo de confiabilidade, um mínimo de transparência.

Começa a ser muito mais fácil criar rotas alternativas evender as drogas na Barra ou em outro lugar por sistema de delivery. Como em qualquerlugar do mundo. Então economicamente [o tráfico] está condernado. Não é sustentável.

É como na economia. Você vai dizer. “Nós temos ainda tal tipode corrupção no Brasil que é muito importante ainda”. Aí você diz: “É”. Olha comoera há dez anos. Olha como será daqui a dez anos. Eu aposto que essaimportância vai definhar. Vai decrescer.

Mas existem númerosque provam a sua afirmação?

O nosso conhecimento nessa área, sobretudo quando se apoiadoem números, sempre foi muito precário. Poderia dar milhões de exemplos sobre aprecariedade. Há muitos anos, todos os que estamos nessa área compartilhamosalgumas evidências que podem ser até enganosas mas são os dados que temos. Asevidências são: você conversa com as lideranças locais, isso é uma fonteimportante. Você conversa com presos do tráfico, você conversa com os policiaishonestos. Você vai ver que existe uma unanimidade sobre a percepção de que háuma perda de poder. Uma desvalorização, um recuo. Essa situação está seagravando e tem sido constante. E há muitas razões para isso. Eu sustendo que omodelo territorializado é caro. É antieconômico.

“O modelo da milícia é muito mais efetivo. E o que eles estãofazendo? Recrutando traficante. Eles estão empregando traficante”

O que é econômico e atraente no modelo de domínioterritorializado ainda, e vai ser por muito tempo? O domínio da polícia, quenão se restringe às drogas, que inclui todas as atividades econômicas, incluindo as drogas. Ou seja, a milícia.  É muito mais efetivo. E o que eles estãofazendo? Recrutando traficante. Eles estão empregando traficante.

Essa história de que a milícia é contrária ao tráfico é umainvenção do discurso conservador e autolegitimador das próprias milícias. Elesocupam, sobretudo, as áreas abandonadas. Vão numa área onde não há resistência [do tráfico]. Quando ocuparam nas favelas nas quais havia resistência do tráfico, o fizerampela polícia, manobrando a polícia. Porque é uma operação muito cara. Quantocusta um caveirão? Você sabe que se uma facção criminosa quiser alugar ocaveirão é R$ 60 mil à noite?

E helicóptero, dá para alugar? Ainda não. Então vão ter [amilícia e o tráfico] de contar com a anuência da polícia. A polícia vai ter deassumir o custo. Sai muito mais barato.

Mas isso é muito mais difícil. Sobretudo quando se tem na Secretaria de Segurança um secretário honrado e honesto que não está nestejogo. Ainda que eu tenha milhões de críticas sobre ele, crítica ao confronto,crítica à reforma política da instituição, ele aceita o jogo do dia a dia daluta contra a corrupção sem entender que é necessário um outro tipo depolítica. Mas eu sempre ressalto que ele é uma pessoa honesta e honrada e quemerece o nosso respeito.

 A milícia é compatível com o Brasil do futuro? Também não.No dia em que houver instituição séria na área de justiça criminal não vai sesustentar. Vai ficar caro também, vai ser complicado. Há disputas internas. Hámuita delação. A justiça pode se qualificar.

Isso, repito, Thiago, não significa que o tráfico nãoexista, que ele não tenha uma dinâmica própria, que ele não vá controlar váriasáreas. No contexto em que eu digo isso, eu digo em uma análise prospectiva, umaanálise de tendência. Eu acho que “o tráfico já era” como solução para o negóciodo tráfico, o modelo tal qual nós o conhecemos já era. O tráfico não. O tráficovai continuar existindo sempre, até feito pelas milícias e de outras formas.

E o que é que estáacontecendo no Rio nestes últimos dias, sobretudo? Fico na dúvida se issosempre aconteceu e agora resolveram anunciar. Tendo adesconfiar um pouco. Alguns especialistas dizem que os carrosqueimados e os arrastões já são uma reação do tráfico às UPPs. Você concorda?

Eu sigo você, concordo com você e com a sua preocupação. Euacho que a gente tem que examinar muito melhor. Não tenho elementos suficientespara uma conclusão, mas concordo com a sua abordagem. Primeiro, temos que ver sehá algo novo, porque a gente tem a mania de dizer que desgraça é uma novidade. Sempreuma novidade. “Agora chegamos ao fundo do poço”. Mas qual é o fundo do poço?Você vai olhar para trás, os jornais dos anos anteriores, é um negócioimpressionante. Se você olhar para os números, talvez você tenha uma constância.Tem havido queda. Não só nos números de homicídios mas também no número deroubos. É muito difícil se ter certeza de que se está falando de qualquer fenômenonovo, em primeiro lugar. Você está totalmente certo no seu ceticismo e na suaprecaução. Nós não temos esses elementos.

Eu não tenho dados internos. Eu tenho relatos sobre os quaispesam para mim uma grande interrogação. Não pela qualidade da fonte, mas peladesconfiança de que a fonte não tenha uma visão ampla o suficiente. Então háaqueles que dizem: o pessoal todo está saindo das áreas ocupadas pela UPP e está indopara o Complexo do Alemão. Mas os que chegam lá agora estão sendo tratados com muitas restrições. Eles estão tendo que ir para pista [praticar outro tipoe crime] para não competir em áreas que estão ocupadas. Eles estão tendoque acumular rapidamente algum recurso até para encontrar outras alternativasde ocupação, localização. Porque eles não podem se concentrar por muito tempo sóno Alemão.

Então, muitos dizem que há sim alguns eventos. Esses eventos não sãonovos, mas estão agora se acumulando, se concentrando por conta desseesforço que esses grupos estão tendo que fazer para se acomodar, se readaptar. Algunsdizem que há uma provocação por conta da UPP.

Há os que dizeminclusive que há um pacto entre as facções…

Sim. Há os que dizem que a tendência é de que haja umaarticulação do tipo PCC. Como nós tivemos no jogo do bicho nos anos 1960. Sematava muito, se morria muito. Chamava-se muita atenção da população. E da polícia!Mas a polícia fazia parte dessa dinâmica. Até que eles chegaram a um acordo. “Esperaaí, nós estamos perdendo gente, nos arriscando, perdendo receita, chamandoatenção, tendo dificuldade com a nossa negociação com a polícia, paraquê? É muito mais racional dividirmos a cidade, celebrarmos aqui o nossoTratado de Tordesilhas. Isso vai permitir um rendimento muito melhor“. E issode fato aconteceu.

Bom, então você pode chegar a esse ponto de entendimento. Aresposta a isso. Há várias interpretações. Mas por enquanto seria levianodizer qualquer coisa. Eu não sei. Não sei se há novidade nesses eventos e quaisseriam suas origens. Mas existe campo para especulação? Claro que existe. Estáhavendo uma reacomodação provocada pelas UPPs? Em parte sim, mas sobretudo está havendo uma reacomodação provocada pelo crescimento das milícias,que é um negócio descomunal.

Thiago Camelo

Ciência Hoje On-line

 
Atualização: já é possível ler a entrevista completa com Luiz Eduardo Soares na CH 278.