Metáforas, analogias, alegorias com fogo e luz há aos montes. Da caverna de Platão a rituais indígenas e ditados populares, o fogo – além da sua importância óbvia – serve de ferramenta que molda filosófica e psicologicamente o ser humano. No fogo, morre; das cinzas, renasce.
Mas há uma proposição ainda mais radical da relação do ser humano com o fogo. E é tão científica (e concreta) quanto poética: só somos humanos porque aprendemos a cozinhar, a controlar as chamas. A tese, que indica novas explicações do nosso caminho evolutivo, está no livro Pegando fogo: por que cozinhar nos tornou humanos, lançado este mês pela Zahar. O autor, o antropólogo biológico britânico Richard Wrangham, defende que nosso antepassado imediato, o Homo erectus, dominou o cozimento dos alimentos para alcançar a sua condição.
Segundo Wrangham, o Homo sapiens (nós) é, fisiológica e estruturalmente, semelhante ao Homo erectus. E foi apenas questão de tempo para que a evolução desta espécie chegasse ao ser humano de hoje. Portanto, o mistério da evolução seria um degrau abaixo. Nas palavras do autor:
[…] A questão de nossas origens diz respeito às forças que fizeram o Homo erectus saltar de seu passado australopitecino.
Wrangham combate a ideia de que essa evolução se deu basicamente pelo ímpeto presumível de se comer carne. E se dedica, boa parte do livro, a provar que carne e até vegetais, sem cozimento, são muito mal aproveitados pelo organismo. Para isso, conversa com crudívoros (aqueles que têm a dieta baseada 100% em alimentos crus) e observa estudos que provam que o corpo funciona de modo muito menos eficaz quando sujeito a esse tipo de comida. Chega a exagerar: para provar a sua tese, vai viver em meio a chimpanzés e passa a ingerir apenas o que os animais comem. Ou seja, uma dieta selvagem e crua. A conclusão – menos energia no corpo.
Então, Wrangham diz:
O cozimento aumentou o valor da comida. Ele mudou nossos corpos, nosso cérebro, nosso uso do tempo e nossas vidas sociais. Transformou-nos em consumidores de energia externa e assim criou um organismo com uma nova relação com a natureza, dependente de combustível.
Em entrevista publicada no portal da Zahar, o antropólogo comenta a discordância que existe entre a sua tese e o estudo de alguns arqueólogos e paleoantropólogos, que acreditam que o homem dominou o fogo mais tardiamente do que o livro sugere. Mas combate a ideia dizendo que a biologia prova o contrário. Chama o dilema de um caso de fricção científica. No livro, ainda afirma: “Nós, seres humanos, somos os macacos cozinheiros, as criaturas da chama”.
Linguagem fácil e bem humorada
O livro foge ao estereótipo do que é um texto acadêmico. Ou feito por um acadêmico. Clichê que para alguns parece bobo, para muitos ainda é dilema crucial na hora de comprar uma obra científica. O receio de ler e simplesmente não entender nada ainda é grande. Mas aqui não vem ao caso. Ao contrário: às vezes, Pegando fogo pode soar bem engraçado, como quando Wrangham compara o bocejo de Mick Jagger (notoriamente conhecido pela sua boca enorme) ao de um chimpanzé.
O antropólogo também não se furta em dar uma mão ao leitor e bancar algumas analogias com o mundo cotidiano. Prática, importante lembrar, ridicularizada por alguns especialistas. Mas nada como uma boa imagem para entendermos algo que não se vê. Por exemplo: no livro, nossa árvore genealógica é reconstruída por meio da alegoria de um estádio cheio, 60 mil pessoas. A primeira pessoa é a sua avó. A segunda, a sua bisavó. A terceira, a sua trisavó. E assim segue. Até que o último familiar ocupa o estádio. Essa pessoa – da sua família – não seria mais um ser humano. Seria um australopitecino. Conclusão da alegoria: não estamos tão distantes assim de nossos ancestrais, mesmo os mais primitivos. Entendido o recado.
Quase filosofia
Em seus melhores momentos, Pegando fogo lembra os grandes livros do gênero explica-mundo. Como o conhecido Breve história de quase tudo, do jornalista norte-americano Bill Bryson, que – apesar de não ser unanimidade – faz um livro introdutório e acessível sobre milhares de descobertas científicas.
Uma outra semelhança com o livro de Bryson: Pegando fogo tem diversos momentos em que a ciência navega por áreas mais abstratas e vagas. Aí, Wrangham dá vazão à alcunha de antropólogo que carrega. Ele cita o historiador Felipe Fernández-Armesto para justificar nossa condição: “O cozimento é um índice de humanidade na humanidade”.
Estamos diante de um livro baseado numa proposição nova, que tenta romper com as ‘certezas absolutas’. De ‘espírito livre’, como o filósofo dizia.
Richard Wrangham
232 páginas – R$ 34,00
Editora Zahar
Tel: (21) 2108-0808
Thiago Camelo
Ciência Hoje On-line