Os sentidos celulares

Nossos sentidos nos permitem detectar estímulos do meio ambiente – luz, odores, sons – e responder a eles de maneira apropriada. Nossas células não têm olhos ou ouvidos, mas precisam saber o que está acontecendo no nosso organismo, tanto para desempenhar suas funções, como para coordenar suas atividades com os outros milhares de tipos celulares existentes no corpo.

Elas fazem isso através de receptores, moléculas presentes em suas membranas que detectam sinais externos – como hormônios e neurotransmissores – e, em resposta, ativam vias bioquímicas nas células. A elucidação do funcionamento dos receptores acoplados à proteína G (GPCR, na sigla em inglês), uma das classes mais importantes dessas moléculas, garantiu aos médicos norte-americanos Robert J. Lefkowitz e Brian K. Kobilka o Nobel de Química de 2012.

A maioria dos processos fisiológicos usa os GPCRs e cerca de metade de todos os medicamentos age por meio dessas moléculas, que funcionam como receptores para uma série de substâncias – entre elas a adrenalina e a serotonina – e estímulos – como luz, odores e gostos.

Desvendando um enigma

A existência de receptores celulares já era postulada no final do século 19, mas décadas se passaram sem que eles fossem identificados. Os cientistas também já conheciam os estímulos e seus efeitos dentro das células. Eles eram até capazes de criar drogas que se valiam dos receptores, mas não sabiam como o sinal passava de fora para dentro das células.

No final da década de 1960, Lefkowitz identificou pela primeira vez um GPCR ao adicionar iodo radioativo ao hormônio adrenocorticotrópico, que estimula a produção de adrenalina – outro hormônio e neurotransmissor envolvido em vários processos fisiológicos.

Lefkowitz concentrou-se, então, no estudo dos receptores adrenérgicos, ou seja, que reconhecem a adrenalina. Enquanto isso, outros pesquisadores descobriram o que acontecia dentro da célula sob a ação dessas moléculas: a proteína G se dividia em três subunidades e ativava outras substâncias. A descoberta rendeu o Nobel de Medicina de 1994 aos norte-americanos Martin Rodbell e Alfred Gilman.

Em 1980, Lefkowitz e colaboradores propuseram o modelo do complexo ternário para a ativação dos receptores. Nele, o estímulo, chamado ligante ou agonista, se conecta à região extracelular do receptor, que altera sua forma, permitindo que a proteína G se ligue à parte intracelular do receptor e inicie a ativação das várias vias bioquímicas.

Complexo ternário
No modelo de complexo ternário proposto por Lefkowitz e colaboradores, o ligante (amarelo) se conecta à região extracelular do receptor (azul), que altera sua forma, permitindo que a proteína G (vermelho) se ligue à parte intracelular do receptor e inicie a ativação das várias vias bioquímicas. (imagem: Fundação Nobel)

Superfamília

Ainda na década de 1980, Lefkowitz decidiu mapear o gene do receptor adrenérgico beta (βAR, na sigla em inglês). Esse trabalho ficou a cargo de Kobilka e a análise de DNA revelou que o βAR era composto de sete hélices transmembranares, ou seja, o receptor dava sete voltas na membrana da célula.

Esse era o mesmo formato e a mesma estrutura de outro receptor identificado anteriormente, a rodopsina, que capta luz nos olhos e também interage com a proteína G. Os pesquisadores concluíram, assim, que deveria haver uma família de receptores que tinham estruturas similares e que funcionavam da mesma maneira.

Hoje, essa família é composta de mais de mil receptores de diversos subtipos, cujas diferenças se resumem a alguns aminoácidos. Tal classe ficou conhecida como 7TM, em vez de GPCR, uma referência às sete hélices.

Mas a história não termina aí. Em 2011, após duas décadas de tentativas, Kobilka conseguiu, utilizando a técnica de cristalografia de raios X, o que muitos acharam que era impossível: uma imagem do receptor no momento em que ele está transferindo o sinal do hormônio para a proteína G.

Imagem do complexo ternário
Em 2011, Kobilka obteve a imagem do complexo ternário por meio de cristalografia de raios X. O modelo acima, feito com base nessa imagem, mostra, na parte de cima, o receptor na forma inativa e ativa (com o ligante). Abaixo, em um modelo diferente, vemos as mesmas estruturas, mas com uma visão de dentro da célula. (imagem: Fundação Nobel)

Impacto médico

Para o bioquímico Claudio Miguel da Costa Neto, da Universidade de São Paulo (USP), a contribuição mais significativa de Lefkowitz foi a descoberta de que diferentes ligantes no mesmo subtipo de receptor podem ativar vias bioquímicas distintas.

Grosso modo, é como um aperto de mão. Se você cumprimentar uma moça, sua mão e seu antebraço sofrerão alterações que serão diferentes daquelas provocadas pelo aperto de mão de um lutador de sumô. Os estímulos são diferentes, assim como as respostas, mas a sua mão é a mesma”, esclarece Costa Neto.

Costa Neto: A contribuição mais significativa de Lefkowitz foi a descoberta de que diferentes ligantes no mesmo subtipo de receptor podem ativar vias bioquímicas distintas

Coordenador do Laboratório de Estrutura e Função de Receptores 7TM na USP, o bioquímico, que esteve no laboratório de Lefkowitz há alguns meses para dar uma palestra, conta que os laureados também descobriram que os receptores 7TM podem atuar em vias de sinalização que não usam a proteína G.

“Esse conhecimento tem grande relevância médica, pois permite ajustar drogas para que ajam apenas em determinados subtipos de receptores. No futuro, talvez possamos especificar até a via de sinalização que queremos ativar na célula”, prevê.

Fred Furtado
Ciência Hoje/ RJ