Otto Maria Carpeaux

Em 1966, Maurício Gomes Leite filmou O velho e o novo, documentário em média-metragem sobre Otto Maria Carpeaux (1900-1978). No filme, vemos Carpeaux na redação do Correio da Manhã, onde trabalhava, andando pelas ruas do Rio de Janeiro, conversando com estudantes, intelectuais, jornalistas. Sua atuação na vida política e intelectual brasileira daquele tempo era extraordinária. Ao lado de seus artigos sobre temas literários, filosóficos e musicais, fez de seus editoriais e artigos políticos uma tribuna crítica fundamental, combatendo a ditadura militar brasileira com todo o rigor de sua ampla cultura e de sua vulcânica indignação ética.

Carpeaux não foi o único que não hesitou em se colocar contra a opressão e o obscurantismo, e devemos homenagear a todos os muitos que assim se colocaram. No entanto, a situação do crítico austríaco-brasileiro é singular, por não ser apenas expressão de forte denúncia do despotismo e da intolerância. Carpeaux foi tanto a voz da repulsa à barbárie quanto a lição inexcedível dos valores que nos permitem sonhar com a construção da liberdade, com a plena emancipação humana.

Não foram isentas de polêmicas e controvérsias a vida ou a obra de Carpeaux no Brasil – polêmicas e controvérsias tanto político-ideológicas quanto sobre suas referências teórico-filosóficas. No plano político-ideológico, levantou-se contra ele a efetiva filiação católico-conservadora, que marcou seus anos europeus. Nessa condição, chegou a participar do governo direitista, mas antinazista, de Engelbert Dollfuss, que buscou resistir à nazificação da Áustria, até ser tragado pela ‘Anexação’ (Anschluss), em 1938.

Metamorfose no Brasil

No Brasil, Carpeaux experimentou a metamorfose que ele observara em vários de seus personagens de eleição: São Paulo, Santo Agostinho, Pascal, o padre Vieira, todos eles twice borns, isto é, indivíduos que vivenciaram tais radicais transformações em seus modos de pensar, sentir, agir – como que nasceram de novo.

Foi assim com Carpeaux. No Brasil ele renasceu, à esquerda. Tal transformação foi objeto de suspeitas por parte da esquerda – de Jorge Amado, por exemplo. Não foi o único mal-entendido sobre sua obra e suas escolhas políticas.

Chama a atenção a diversidade dos interesses e conhecimentos de Carpeaux, capaz de considerar tanto a altíssima cultura clássica quanto o romance policial

Nos dias que correm, seu legado tem sido reivindicado por extremado direitismo, que o quer, malgré lui, exato representante de um catolicismo conservador, de valores tradicionalistas, em perfeita dissonância com tudo o que mobilizou sua vida no Brasil, de todo marcada pela opção pela esquerda. Para os direitistas que hoje reivindicam Carpeaux, é como se fosse uma aberração que um homem de cultura, de saber universal, fosse de esquerda, e que essa esquerda seja a luta pela igualdade e a liberdade.

Também sua crítica literária, sua historiografia, sua sociologia da cultura, sua musicologia podem ser, todas elas, marcadas por firme adesão às “ciências do espírito” e igualmente forte repúdio às várias modalidades de formalismos, ao estruturalismo.

Na década de 1970, a revista Manchete publicou uma seção, ‘Obras-primas que poucos leram’, em que Carpeaux, mais uma vez, deu mostras de sua amplíssima cultura, colocada a serviço da atualização e enriquecimento de nossas referências literárias por meio da leitura de centenas de autores e obras significativas da literatura mundial. Chama a atenção a diversidade dos interesses e conhecimentos de Carpeaux, capaz de considerar tanto a altíssima cultura clássica quanto o romance policial. Toda a tradição literária ocidental, dos grandes escritores aos menores, que também compõem a trama da cultura.

De Karpfen a Carpeaux

Nascido em Viena, em 9 de março de 1900, Otto Maria Karpfen chegou ao Brasil em agosto de 1939, após experimentar os trágicos acontecimentos que infelicitaram a Áustria: do assassinato, em 1934, do chanceler Dollfuss até a anexação do país, em 1938, à Alemanha hitlerista. Ao sair da Áustria, refugiou-se na Bélgica, onde trabalhou como jornalista. 

Viena
Nascido em 1900, Carpeaux é filho daquela Viena finissecular, cidade inesgotável na pluralidade de suas facetas. (imagem: Biblioteca do Congresso (EUA)/ Wikimedia Commons)

No Brasil, adotou o sobrenome Carpeaux e, depois de passagem por São Paulo, fixou-se no Rio de Janeiro, onde, a partir de 1941, dedicou-se ao jornalismo, sua atividade mais permanente no Brasil. Na Áustria, Carpeaux estudara física, química, matemática, filosofia e música. Doutorou-se em 1925, pela Universidade de Viena, em ciências naturais.

Carpeaux é filho daquela Viena finissecular, cidade inesgotável na pluralidade de suas facetas. Qual a Viena mais real, mais conforme sua verdadeira essência? A borbulhante e galante das operetas de Franz Lehár, das valsas de Johann Strauss, ou a radicalmente vanguardista de Arnold Schoenberg, Alban Berg, Anton Webern? A cidade das novas correntes filosóficas, como o empiriocriticismo de Ernst Mach e o neopositivismo do ‘Círculo de Viena’, ou a cidade da psicanálise, de Sigmund Freud, da literatura erotizada e irreverente de Arthur Schnitzler? A capital da velha monarquia dual ou a cidade da crítica demolidora de Karl Krauss? Com efeito, todas essas Vienas existem e nem sempre é possível distingui-las, já que se misturam.

O Brasil deve muito aos vários povos que nos têm formado. País de diversidade natural, paisagística, não é menos diverso em suas raízes étnicas e culturais. Muito devemos aos que, forçados pela escravidão ou por escolha, têm vivido e construído o Brasil. Do ponto de vista cultural, em momentos importantes, fomos capazes de absorver as influências adventícias, aclimatando-as, transformando-as em instrumentos de nossa própria emancipação cultural.

Chegado ao Brasil em 1939, sem dominar nosso idioma, já em 1942 Carpeaux nos deu extraordinário presente, A cinza do purgatório, bisado em 1943, com Origens e fins

Chegado ao Brasil em 1939, sem dominar nosso idioma, já em 1942 Carpeaux nos deu extraordinário presente, A cinza do purgatório, bisado em 1943, com Origens e fins. Nesses dois livros, fomos expostos a autores, questões, símbolos, realidades decisivas de nosso tempo, trazidos para a nossa língua, para a nossa cultura, com uma inexcedível combinação de erudição, sutileza, refinamento e sentido ético.

Em 1949, Carpeaux retribuiu sua acolhida no Brasil com a Pequena bibliografia crítica da literatura brasileira, obra utilíssima até hoje. Seguiram-se Respostas e perguntas e Retratos e leituras (ambos de 1953), Uma nova história da música (1958), Livros na mesa (1960) e A literatura alemã (1964). Em 1965, publicou dois livros sobre temas políticos – livros corajosos e combatentes naqueles tempos bicudos: A batalha da América Latina e O Brasil no espelho do mundo. Em 1968, reuniu alguns de seus ensaios literários no livro Vinte e cinco anos de literatura. Em 1971, publicou Hemingway, tempo, vida e obra. Foi ainda redator e coeditor da Grande Enciclopédia Delta-Larousse e colaborou na Enciclopédia Mirador Internacional.

Faleceu a 2 de fevereiro de 1978. No mesmo ano foi publicado seu livro póstumo Alceu Amoroso Lima por Otto Maria Carpeaux. Também em 1978, Sebastião Uchoa Leite publicou Reflexo e realidade, uma reunião de seus ensaios literários. Em 1992, Alfredo Bosi lançou um volume com artigos de Carpeaux publicados de 1946 a 1950 no suplemento ‘Letras e Artes’, do jornal A Manhã. A Univercidade/Topbooks publicou, em 1999 e 2005, dois volumes de Ensaios reunidos de Otto Maria Carpeaux: 1942-1978 e 1946-1971. Em 2006, foi publicado De Karpfen a Carpeaux, livro de Mauro Souza Ventura sobre a formação política e literária de Carpeaux na Áustria.

Três cidades, três paixões

Entre 1944 e 1945, Carpeaux escreveu uma História da literatura ocidental, publicada em oito volumes entre 1959 e 1966, que teve duas reedições integrais (uma em 1970, pela Alhambra, e em 2011, pelo Senado Federal) e uma parcial (pela Ediouro). Só por esse título seu nome já estaria entre os grandes nomes de nossa cultura. Mais que qualquer outro que escreveu, esse livro dá conta de uma cultura efetivamente universal, que seria notável em qualquer país. Seu exemplo, sua firmeza, sua santa indignação contra a opressão e contra a barbárie continuam a nos inspirar.

Em sua luta, que é a nossa, ele disse – “é a luta pela libertação do povo brasileiro”. Quando Carpeaux escreveu isso, em 1968, tratava-se de combater a ditadura militar brasileira. Se entre nós estivesse hoje, ele não teria abdicado de combater, que motivos para isso continuam existindo, que os poderes que alienam, que corrompem, que venalizam, continuam imperantes.

Ouro Preto
Ouro Preto é o símbolo dessa pátria-afinidade que Carpeaux escolheu para morar. Lá descobriu uma ponte, uma ligação indissolúvel, com suas raízes, e deixou seu coração. (foto: Wikipedia Commons/ Morio)

Onde encontrar Carpeaux? Em sua Viena natal? Em Alexandria, sua pátria espiritual? Em Ouro Preto, no Brasil, na terra em que escolheu viver? Alguns, é claro, responderão: nas três cidades-símbolos. Sabem esses o quanto tais cidades emblemáticas estão presentes nele. Três cidades, três paixões: a música, a literatura, a política. Muitos, talvez, questionem a tríade, por arbitrária. Dirão que, para Carpeaux, Viena não é só a música, Alexandria não é só a literatura, Ouro Preto não é só a política. Lembrarão que Viena é a música, mas é a filosofia, a psicanálise, o direito, a arquitetura, o romance, a poesia. Lembrarão que Carpeaux fez política, também, na Europa, em seu intransigente antinazismo, que lhe valeu o exílio doloroso.

Viena, a capital trepidante de um império em decadência. Eis o ambiente da formação intelectual de Carpeaux. Ele estudou ciências naturais sob a tutela do empirismo de Ernst Mach. No entanto, suas referências mais decisivas, no campo literário e filosófico, foram as ‘ciências do espírito’, de Wilhelm Dilthey, de Heinrich Rickert, de Georg Simmel, e, sobretudo, o pensamento histórico-realista de Francisco de Sanctis, de Benedetto Croce. São esses os núcleos de uma postura crítica, que se forjou na compreensão, na busca de uma crítica que contemplasse a indissociabilidade de forma e conteúdo, em perspectiva próxima à do filósofo Georg Lukács, que também foi tributário das ‘ciências de espírito’ e, a partir daí, estabeleceu aquela decisiva tese-programa de que o “social na obra de arte está na forma”.

Onde encontrar Carpeaux? Em sua Viena natal? Em Alexandria, sua pátria espiritual? Em Ouro Preto, no Brasil, na terra em que escolheu viver? 

Mais de uma vez, Carpeaux escreveu sobre Alexandria: ‘Alexandria ou a inteligência’. Alexandria como cume do conhecimento, da erudição, repositório de um momento excepcional da história da cultura. Era a segunda paixão de Carpeaux. Se Viena foi a formação, o úbere riquíssimo e diverso, o solo insuperável da música, Alexandria é a literatura, a poesia, a paixão pelo livro, pela biblioteca. Pátria sem fronteiras, aberta, generosa, sem alfândega, sem censores e polícia.

A terceira paixão de Carpeaux, sua pátria eletiva, é o Brasil, é Ouro Preto. Podia ter escolhido qualquer outro lugar. Em qualquer deles seria expoente. Escolheu o Brasil. Revelou-nos mundos e ideias. Falou-nos do que não conhecíamos, da vanguarda. Ensinou-nos a ler os clássicos, revelou-nos a nós mesmos, pois soube ler e entender nossos poetas e escritores, nossas realidades e aspirações.

Ouro Preto é o símbolo dessa pátria-afinidade eletiva. Suas montanhas são transfigurações das montanhas austríacas. O casario, as ruelas, as ladeiras, as igrejas, os monumentos, o diabo nas livrarias do cônego e do bispo, a música dos mestres mulatos, o Aleijadinho. Em Ouro Preto, três vezes descoberta, Carpeaux encontrou-se, com o Brasil. Lá descobriu uma ponte, uma ligação indissolúvel, com suas raízes, lá deixou seu coração. Em ‘Ouro Preto, no Brasil, em casa’.

João Antonio de Paula
Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional de Minas Gerais
Faculdade de Ciências Econômicas 
Universidade Federal de Minas Gerais

Texto originalmente publicado no sobreCultura 15.