Para superar o passado

O tema da 65ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) foi ‘Ciência para um novo Brasil’. Qualquer nação renovada, no entanto, precisa superar um passado indesejável – foi o que mostraram os participantes de uma mesa-redonda que debateu os desafios de eliminar algumas doenças endêmicas persistentes no país, como malária, dengue e leishmaniose. Mais do que isso, na discussão sobre um novo país parece ser fundamental a orientação de nossas políticas públicas a partir do conhecimento e não de interesses políticos que lancem mão de interpretações enviesadas da ciência. 

A persistência de dengue, malária e leishmaniose está relacionada a especificidades de seus vetores e patógenos, mas também a questões sistêmicas da realidade brasileira

Além de serem doenças tropicais negligenciadas transmitidas por mosquitos e problemas complicados de se combater no Brasil, as três doenças têm mais um ponto em comum: matam de forma similar “sangrando”, nas palavras do médico e epidemiologista Carlos Henrique Costa, da Universidade Federal do Piauí. A persistência de cada uma está relacionada a fatores específicos de seus vetores e patógenos, mas também a questões sistêmicas da gestão da saúde brasileira.  

A malária no Brasil encontra-se praticamente restrita à Amazônia, que registrou quase todos os 240 mil casos do último ano. A entomóloga Camila Damasceno, da coordenação geral do Programa Nacional de Prevenção e Controle da Malária, destacou o desafio de lidar com questões que vão da falta de agilidade do diagnóstico até o controle vetorial. “Manter uma rede de tratamento e controle representa enorme esforço de campo, o acesso é complicado, há falta de pessoal capacitado”, avaliou. “Mesmo com o teste rápido, sem microscopia, só conseguimos diagnósticos em menos de 48h em 40% dos casos, em média.”

Rede contra insetos
A malária é um flagelo que atinge principalmente a África. No Brasil, o trânsito populacional mais intenso aumenta o risco de reemergência fora da Amazônia e torna o monitoramento ainda mais crucial. (foto: Gates Foundation/ Flickr – CC BY-NC-ND 2.0)

O aumento das atividades humanas na região, incluindo planos para grandes empreendimentos, como usinas hidrelétricas, preocupa, por colocar dezenas de milhares de pessoas nunca sensibilizadas à mercê do mosquito. “Fundamental para tentar controlar esse impacto são as novas regras de licenciamento ambiental, que exigem um laudo ‘malarístico’ da obra e obrigam as empresas a dedicar parte de seus recursos a estratégias de controle da doença.”

Nos últimos anos, os números são decrescentes – talvez reflexo da ação do Programa Nacional de Controle da Malária, que realiza atividades de controle, notificação e busca ativa dos casos. “Ainda é muito cedo para pensar em eliminar a malária, há muitos pontos de grande incidência, mas trabalhamos para eliminar ao menos o Plasmodium falciparum, responsável pelas manifestações mais graves da doença”, disse Damasceno.
 

Democrática e midiática 

Diferente da malária, a dengue não tem preferência: ocorre em todo o país. E a intensidade com que tem fustigado o Brasil trouxe inesperadas consequências. Por exemplo, sua sintomatologia está mais complexa: tem mostrado associações com sintomas como diarreia, dor de garganta e até coriza. “Manifestações comuns em uma primeira infecção podem ser diferentes numa terceira, o que complica o diagnóstico”, acrescentou o epidemiologista Luciano Pamplona, da Universidade Federal do Ceará. “Também observamos um deslocamento do perfil de casos graves: há duas décadas, ocorriam mais na casa dos 38 anos, hoje, em menores de 16.”

Pamplona: “No Brasil, ou temos epidemia no Rio de Janeiro ou não tem dengue. Em 2013, há uma enorme quantidade de casos no Mato Grosso e no interior de São Paulo, mas ninguém sabe”

A subnotificação também é um problema – segundo Pamplona, a análise da epidemia de 1994 no Ceará mostrou, por exemplo, que os 47 mil casos oficiais eram, na verdade, 660 mil. “Mesmo tendo boas ferramentas de registro, a tarefa é difícil”, analisou. “Perdemos os casos assintomáticos, os não diagnosticados e os não relatados.” Outro desafio tem a ver com o mosquito: em muitas regiões, ele já é resistente a todos os tipos de inseticidas. 

Pamplona também destacou um ponto menos usual: para ele, a grande comoção causada pela dengue faz com que, muitas vezes, a mídia e as redes sociais disseminem informações truncadas sobre a doença. Por outro lado, o pesquisador lamentou a pouca visibilidade da dengue fora do cenário carioca. “No Brasil, ou temos epidemia no Rio de Janeiro ou não tem dengue”, avaliou. “Em 2013, há uma enorme quantidade de casos no Mato Grosso e no interior de São Paulo, mas ninguém sabe; o que dificulta a mobilização contra a doença.”
 

O misterioso calazar

“Se fôssemos comparar, a dengue seria uma doença mais charmosa, carnavalesca, explosiva, carioca”, afirmou Carlos Henrique Costa. “Já o calazar é mais insidioso, mas mata em 10% dos casos.” O calazar – a velha leishmaniose – atinge, no Brasil, basicamente crianças e pessoas que vivem com o HIV, situação epidemiológica preocupante. A doença ainda é muito pouco conhecida. O epidemiologista destaca, por exemplo, a mudança ainda inexplicável em seu perfil epidemiológico, que tem se tornado cada vez mais urbano nos anos 2000. 

Cachorro
A eliminação dos cachorros, reservatórios naturais da leishmaniose, é uma política muito utilizada para o controle da doença. No entanto, não há resultados conclusivos sobre sua eficiência. (foto: Robson Magalhães/ Flickr – CC BY-NC 2.0)

O desconhecimento também alimenta a polêmica sobre a eliminação de cães infectados. “Os estudos são inconclusivos sobre a eficiência disso”, destacou Costa. No entanto, a prática é muito adotada como política pública – uma apropriação enviesada da ciência, segundo o pesquisador. “Essa é uma questão para o serviço de saúde e a ciência, mas os governos têm utilizado a comunidade científica de forma indevida, para ratificar práticas sem respaldo”, avaliou. “Por exemplo, montam comitês apenas com cientistas que corroboram sua intenção; e muitas vezes eles nem se dão conta dessa falsificação.”

A questão leva a uma discussão importante: para o especialista, caminhamos para um ponto em que qualquer política pública deverá estar fundamentada em evidências científicas. “Isso envolve muitas questões: o conhecimento estaria restrito apenas às ciências objetivas? Por outro lado, de que adianta fazer política pública que não vai ter efeito nenhum?”, questiona. “Mas o mais importante é evitar medidas baseadas em falsas evidências, que deturpem a ciência.”

Em um momento em que o Brasil amadurece como centro produtor de ciência, os questionamentos são fundamentais para a construção desse novo país. “Precisamos de linhas de estudo sobre as distorções sofridas pelo conhecimento para justificar políticas duvidosas, no combate a doenças e em todos os outros campos, além de discussões amplas e honestas sobre as implicações éticas de nossas políticas de saúde”, completou Costa.

Marcelo Garcia
Ciência Hoje On-line

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