Passado e tragédia

Foi em Minamata, Japão, no distante ano de 1956. Uma doença misteriosa intrigava os médicos. Convulsões severas, surtos de psicose, febre às alturas. Quatro pacientes morreram.

Que mal os teria acometido? Perplexa, a equipe do hospital não imaginava que aqueles enfermos seriam os primeiros registros do que entrou para a história como ‘doença de Minamata’. Anos se passaram até que se esclarecesse o enigma. Diagnóstico: contaminação por mercúrio.

Tudo começou quando, a partir da década de 1930, uma fábrica de produtos químicos – a Chisso Corporation – resolveu despejar rotineiramente seus rejeitos industriais nas águas que banhavam o município de Minamata. E o fez por duas décadas sem culpa ou pudor. Até que, em meados dos anos 1950, os habitantes daquela pequena cidade costeira do sul do Japão começaram a perceber que algo não ia bem.

A vida marinha estava contaminada. Pelos céus, aves se comportavam estranhamente; e, pelas ruas, gatos e cães nasciam com deformações bizarras. Pois o mercúrio em excesso já era parte da cadeia alimentar. E estava traçado o destino de Minamata: a contaminação do ser humano seria apenas questão de tempo.

vítima de Minamata
Contaminação por mercúrio: vítima de Minamata. (foto: W. Eugene Smith/ Aileen Archive)

Não deu outra. Estima-se que pelo menos 50 mil pessoas tenham sofrido as consequências da intoxicação por mercúrio naquela cidade.

“A causa da tragédia foi o consumo de peixes contaminados”, escreve o biólogo Wanderley Bastos, da Universidade Federal de Rondônia (Unir). “A população passou a apresentar sintomas como perda de visão e sérios comprometimentos na coordenação motora e muscular; além disso, estavam nascendo crianças com danos neurológicos irreversíveis”, contextualiza Bastos. São os elementos clássicos do quadro sinistro da toxicologia mercurial.

Segundo estudiosos, naqueles 20 anos foram lançadas à baía de Minamata algo em torno de 200 a 600 toneladas de mercúrio. Bateram a casa dos milhões de dólares os prejuízos aos cofres públicos japoneses.

O mercúrio era usado pela Chisso Corporation na produção de PVC (policloreto de polivinila), o famigerado plástico que atualmente engrossa o rol da vilania ambiental. Hoje, no entanto, a empresa fabrica insumos para telas de LCD (cristal líquido). A companhia até agora se vê enredada em batalhas judiciais indenizatórias – pois a contaminação por mercúrio ainda é um fardo na vida e na memória de Minamata.

Registros
Apreciadores da boa fotografia se interessarão pelo que foi, provavelmente, o melhor registro imagético do acidente de Minamata: as fotografias de Eugene Smith, fotojornalista estadunidense que registrou através de suas lentes cenas que mesclam rara maestria técnica e apurado senso de horror.

Iraque: o pão e o pecado

Não bastassem malfadados conflitos políticos e religiosos, o Iraque da década de 1970 também foi palco de um acidente de proporções drásticas envolvendo contaminação por mercúrio.

A tragédia iraquiana foi sui generis. E a causa surpreendeu a todos, pois foi o insuspeito pão nosso de cada dia o agente responsável pelo acidente. Explica-se: o pão é feito de trigo. E, na safra anterior, às sementes do cereal haviam sido aplicadas doses de um fungicida à base de mercúrio.

A novela é mais ou menos assim: aquelas sementes de trigo haviam sido importadas do México. Mas, após longa viagem por mar, a umidade as poderia tornar imprestáveis. Eis que, para remediar o provável aparecimento de fungos indesejados, aplicou-se o tal fungicida.

Tragédia Iraque
No Iraque, sementes de trigo protagonizaram um dos mais graves acidentes históricos de contaminação por mercúrio. (foto: Wikimedia Commons)

Na época, insumos agrícolas à base de mercúrio tinham preços competitivos. Detalhe: já haviam sido banidos na Escandinávia e em alguns estados norte-americanos, por suspeitas de que poderiam gerar quadros toxicológicos temerários (agroquímicos; negligências; toxicologia mal resolvida. No tempo e no espaço, a história não hesita em se repetir).

Pelo menos 40 mil iraquianos se fizeram vítimas – e esses números são descaradamente subestimados, pois consideram apenas os casos mais óbvios de intoxicação. Na verdade, há quem estipule o número de contaminados em mais de 100 mil.

Atlas tóxico

Os rastros do mercúrio estão em diversos países. Japão, Iraque, Paquistão, Camboja, Gana, Guatemala são alguns dos locais que vivenciaram tragédias silenciosas – e, se os pessimistas estiverem certos, o Brasil acena como bom candidato à famigerada lista.

Este ano, o Programa das Nações Unidas para Meio Ambiente (Pnuma) publicou um belo de um relatório: o Mercury: time to act (sem tradução para o português). É um compilado de fôlego sobre as principais questões que envolvem os usos e preocupações concernentes a esse perigoso elemento químico neste início de século.

Este é o terceiro texto da série especial ‘Rastros do mercúrio‘, publicada esta semana na CH On-line. Confira!

Henrique Kugler
Ciência Hoje/ RJ