Pelo futuro das nossas crianças

Um belo recado em prol do futuro do mundo e contra o radicalismo. O prêmio Nobel da Paz de 2014 reconheceu a importância do trabalho do indiano Kailash Satyarthi, veterano da luta pelos direitos das crianças e contra a exploração infantil, e da paquistanesa Malala Yousafzai, jovem militante que ficou conhecida mundialmente depois de sofrer uma tentativa de assassinato pelo Talibã, em 2012, por defender a educação das meninas em sua região natal. A premiação destaca a necessidade de olhar com mais cuidado para as próximas gerações para garantir um futuro mais harmonioso.

Volpi: O prêmio aponta o trabalho infantil como um grande problema e a educação como uma solução

Mário Volpi, coordenador do Programa Cidadania dos Adolescentes do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) no Brasil, lembra que o prêmio é um reconhecimento não só de pessoas, mas de causas. “Ele aponta o trabalho infantil como um grande problema e a educação como uma solução, ao reunir duas personalidades que têm contribuído para tornar o mundo um lugar melhor”, avalia. “Igualdade de direitos e justiça social são pilares da paz e, enquanto jovens forem tratadas como objetos de exploração, será impossível construir uma sociedade justa e com oportunidades iguais.”

O francês Rabah Belaidi, especialista em direito do trabalho da Universidade Federal de Goiás, classificou a importância do prêmio como capital. “Trata-se de um recado para todos que desrespeitam gravemente os direitos de crianças e adolescentes de todas as formas: trabalho degradante, trabalho escravo, prostituição, participação em conflitos armados, estupros e tráfico de seres humanos”, pondera.

Lugar de criança

O indiano Satyarthi atua no combate ao trabalho infantil desde a década de 1980 – quando fundou a ONG Movimento para Salvar a Infância, na Índia. Desde então, atua no resgate de crianças que trabalham em condições de escravidão, no enfrentamento da exploração do trabalho infantil e na proposição de leis pela educação obrigatória e gratuita. Em sua trajetória, organizou protestos e campanhas de mobilização e foi um dos responsáveis, por exemplo, pela criação da Marcha Global contra o Trabalho Infantil, movimento mundial que visa sensibilizar a sociedade para o problema.

O comitê do prêmio Nobel elogiou a coragem do indiano em seguir a louvável tradição pacifista de Mahatma Gandhi e seu papel de destaque na criação de convenções de proteção aos direitos das crianças. “Nas últimas décadas, Satyarthi tem liderado várias manifestações pacíficas e esse prêmio é um claro sinal do comitê para que as lutas sejam sempre feitas de forma não violenta”, avaliou Belaidi.

Movimento pelo fim do trabalho infantil
Desde a década de 1980, Kailash Satyarthi promove iniciativas pelo fim da exploração do trabalho infantil baseadas na proposta da não violência, tendo desempenhado papel importante nos avanços dessa área desde então. (foto: http://www.kailashsatyarthi.net)

Atualmente estima-se que o trabalho infantil atinja cerca de 168 milhões de crianças no mundo. Em 2000, esse número era maior, 246 milhões, mas ainda parece grande demais. Escândalos de utilização de mão de obra infantil ainda são comuns em nações como a própria Índia e a China, envolvendo, inclusive, grandes empresas, como os casos recentes da Samsung e da Apple.

“Satyarthi se dedica a denunciar a exploração econômica das crianças pelas multinacionais; então a láurea não deixa de ser uma condenação da forma de atuação dessas empresas”, afirma Belaidi. “É um recado à comunidade internacional e às empresas: é necessário respeitar o direito das crianças; esse problema deve ser tratado com mais seriedade e é preciso desenvolver mecanismos reais de fiscalização.”

Barbada paquistanesa

Se Satyarthi recebeu o prêmio pela luta contra o trabalho infantil, é como se Yousafzai representasse o outro lado, complementar, da moeda. Com apenas 17 anos, ela se tornou a primeira paquistanesa e a pessoa mais jovem a ganhar um prêmio Nobel, justamente “por sua luta contra a supressão de crianças e jovens e pelo direito de todas as crianças à educação”, como afirmou o comitê responsável pelo prêmio.

Com apenas 17 anos, Yousafzai se tornou a primeira paquistanesa e a pessoa mais jovem a ganhar um prêmio Nobel

A jovem ficou conhecida no mundo após ser baleada na cabeça por talibãs na saída da escola, quando tinha 15 anos. Seu crime foi ter se destacado na luta pela educação das meninas e adolescentes no Paquistão: a convite da rede BBC, ela escreveu o blogue ‘Diário de uma estudante paquistanesa’, no qual denunciava a dificuldade enfrentada no país sob domínio do Talibã. Com ele, veio a notoriedade, entrevistas para canais de TV e jornais, uma indicação ao Prêmio Internacional da Paz da Infância em 2011 – e ódio dos extremistas, que tentaram calar sua voz em outubro de 2012.

Nove meses e algumas cirurgias depois do atentado, ela discursou na Assembleia de Jovens da ONU, quando defendeu a educação e condenou o terrorismo. “Yousafzai é um exemplo extraordinário do potencial dos adolescentes do mundo inteiro”, diz Volpi. “As sociedades precisam ampliar os espaços de participação, ouvir suas vozes e criar oportunidades de desenvolvimento para garantir que eles exerçam sua cidadania.”

Malala Yousafzai com Barack Obama
Vítima de suas ideias e de sua popularidade, Malala Yousafzai se reuniu com o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, a primeira dama, Michelle Obama, e sua filha Malia em 2013, cerca de um ano depois de sofrer um atentado pelas mãos do Talibã. (foto: Pete Souza/ White House – P101113PS-1119)

Yousafzai chegou a figurar entre os favoritos ao Nobel da Paz do ano passado, mas a comoção mundial gerada pelo uso de armas químicas na Síria acabou dando o prêmio para a Organização para a Proibição de Armas Químicas (Opaq). Este ano, fatos como o sequestro de mais de 200 meninas por grupos radicais islâmicos na Nigéria voltaram a chamar a atenção mundial para a situação de precariedade a que as crianças, em especial do sexo feminino, ainda são submetidas em muitas partes do mundo e devem ter influenciado a decisão do comitê.

Índia e Paquistão

A paquistanesa dedicou o prêmio a todas as crianças “que não têm voz, cujas vozes precisam ser ouvidas.” Satyarthi, por sua vez, prometeu “unir as mãos” com a jovem para promover um maior entendimento entre Índia e Paquistão. Yousafzai chegou a convidar os primeiros-ministros dos dois países para assistir à entrega do Nobel da Paz, marcada para 10 de dezembro – talvez eles compareçam se mais um conflito não explodir na região dentro em pouco, já que a situação voltou a ficar quente por lá.

“Este é mais um traço marcante do prêmio deste ano: concedê-lo a um hindu indiano e a uma muçulmana paquistanesa tem um simbolismo muito forte”, avalia Belaidi. “Nessa região do mundo, as tensões latentes entre comunidades religiosas hindus e muçulmanas e entre a Índia e o Paquistão podem provocar conflitos desastrosos em termos humanitários.”

Marcelo Garcia
Ciência Hoje On-line