Piano digital

Melodias arrebatadoras, momentos musicais de indizível beleza. A obra de Fryderyk Chopin (1810-1849) é cativante. Imortalizada no repertório da música ocidental, ela revela uma ambivalência peculiar: por um lado, as frases melódicas aprazem o espírito; por outro, a dificuldade técnica das composições desafia mesmo o mais experiente dos pianistas.

Mas, poucos sabem, Chopin raramente legou uma única versão de suas peças. E mais: “em recitais, ele jamais tocava uma mesma composição duas vezes da mesma maneira”, testemunhou um afinador de pianos que conviveu com o artista.

É por isso que musicólogos, instrumentistas e curiosos estão animados com o Online Chopin Variorum Edition – um audacioso projeto que visa reunir as partituras (autógrafas e editadas) de todos os trechos para os quais o compositor esboçou mais de uma versão.

A ideia é de tirar o chapéu. Capitaneada pelo musicólogo John Rink, da faculdade de música da Universidade de Cambridge (Inglaterra), ela é fruto de quase uma década de exaustivo trabalho, e o resultado foi um belo site que disponibiliza – gratuitamente – centenas de partituras do compositor para as quais há mais de uma versão.

Não entendeu? O vídeo abaixo – muito bem feito, aliás – explica os detalhes desta arrojada empreitada.

O projeto ainda está em andamento. Mas intérpretes e pesquisadores já podem lançar mão das ferramentas on-line disponibilizadas no site – e comparar lado a lado diferentes versões das partituras que Chopin nos legou.

Em alguns casos, as diferenças são radicais. O prelúdio em dó menor, Opus 28 nº20, por exemplo, tem duas versões consideradas originais. Uma tem 13 compassos. Outra, apenas nove. Além disso, a primeira finaliza a peça com um acorde maior; enquanto a segunda a encerra com um acorde menor.

Se você não entendeu o parágrafo acima, anote aí duas pequenas noções de teoria musical básica: (1): ‘compasso’ é a unidade métrica repetitiva na qual a música é dividida. Grosso modo, se um verso é feito de sílabas, uma música é feita de compassos. E (2) ‘acorde maior’ é aquele conjunto de notas que soa aberto, alegre; enquanto ‘acorde menor’ é aquele conjunto de notas que soa triste, introspectivo.

Rink: “Para Chopin não havia versão definitiva; ele sempre mudava de ideia”

“Para Chopin não havia versão definitiva; ele sempre mudava de ideia”, comenta Rink. Muitas de suas obras eram impressas simultaneamente em Londres, Paris e Viena. Para cada localidade, o compositor escrevia versões diferentes. E, quando as edições se esgotavam, as novas impressões traziam novas mudanças.

“Isso traz implicações para a filosofia da música, evidenciando o problema de se considerar um único texto ‘cristalizado’ para cada peça”, comenta o pianista Alexandre Dias, que se mostra entusiasmado com o projeto. “Espero que, a partir desta iniciativa, surjam outras similares, especialmente no Brasil; se um dia conseguirmos fazer um site assim para Villa-Lobos, por exemplo, será uma façanha incrível.”

Em tempo: os leitores interessados em maiores aprofundamentos podem conferir o ensaio O piano de Chopin, do músico e ensaísta José Miguel Wisnik. E, nunca é demais lembrar, um dos maiores intérpretes de Fryderyk Chopin é, atualmente, o mineiro Nelson Freire.

Henrique Kugler
Ciência Hoje/ RJ