Por um palmo de chão


Imagem clássica do movimento do Contestado, sangrenta disputa por terras entre os estados de Santa Catarina e Paraná que opôs populações locais às forças públicas no início do século 20. A foto mostra um piquete de ‘vaqueanos’, forças civis que combatiam os rebeldes (fotos: Claro Jansson).

Uma sangrenta disputa por terras ocorrida entre 1912 e 1916 na região de fronteira entre o Paraná e Santa Catarina marcou profundamente a história – e a geografia – desses dois estados do Sul brasileiro. Embora a questão social esteja na origem do conflito, fala-se em ‘fanatismo religioso’ ou ‘loucura coletiva’, como apontam os historiadores Márcia Espig e Paulo Pinheiro Machado na apresentação da obra A guerra santa revisitada – Novos estudos sobre o movimento do Contestado, lançada recentemente pela editora da Universidade Federal de Santa Catarina.

O livro, organizado por Espig e Machado, reúne artigos inéditos – e com visões diferentes – sobre o conflito, cujas conseqüências perduram até hoje, como, por exemplo, nas cidades de Rio Negro (PR) e Mafra (SC), divididas após os embates. União da Vitória (PR) e Porto União (SC), antes unificadas e pertencentes ao Paraná, também acabaram separadas.

O movimento do Contestado teve início em uma área onde hoje está o município catarinense de Irani, que começou a ser desbravado no século 19 por colonos vindos principalmente do Rio Grande do Sul. À época da chegada dos primeiros fazendeiros, as terras pertenciam ao município paranaense de Palmas, mas eram reivindicadas por Santa Catarina e também pela vizinha Argentina. Como a primeira batalha ocorreu nos campos de Irani, a 22 de outubro de 1912, pondo fim à vida de sertanejos, caboclos e militares e espalhando pânico pela região, Irani ficou conhecido como ‘berço do Contestado’.

O chefe rebelde Bonifácio Alves dos Santos (conhecido como Bonifácio Papudo, à direita, em primeiro plano) rende-se ao tenente Castelo Branco, do exército brasileiro.

A guerra envolveu rebeldes dos dois estados, que entraram em choque com as polícias locais e, posteriormente, com tropas do governo federal. Para pôr fim ao conflito, que se estendeu por quatro anos e deixou mais de 20 mil mortos, nada menos que metade do contingente do exército brasileiro foi deslocada para a região.

Apesar disso e de o movimento ter se espalhado por uma área de quase 40 mil km 2 , a imprensa da época não deu destaque aos acontecimentos. A I Guerra Mundial, que eclodiu em 1914, ‘roubou a cena’. Segundo Machado, “pouca gente sabe o que foi o movimento do Contestado e quais foram suas conseqüências”.

As informações que embasam os artigos do livro foram extraídas de documentos oficias – ‘ordens do dia’ do exército brasileiro ditadas pelos próprios comandantes das tropas – e de fontes diretas, escritos de pessoas que, de algum modo, tiveram relação com o movimento. Os autores lançaram mão ainda de jornais e outras publicações da época para obter muitas dos dados só agora trazidas a público.

“Há grande variedade de fontes pesquisadas, o que garante riqueza de detalhes dos fatos narrados”, diz Machado. Além de poder informar-se sobre o movimento, o leitor também encontrará na obra várias imagens originais – feitas em preto-e-branco – de soldados, jagunços, políticos e moradores da região do conflito durante o seu desenrolar.

Diferentes ângulos da guerra
A coletânea foi dividida em quatro eixos temáticos – a maneira mais adequada, segundo Machado, para reunir os textos selecionados. A primeira parte, intitulada “Conflitos, compadrio e luta por direitos”, contém três artigos. Neles, os autores falam sobre o impacto do compadrio na região, a luta por terras e as relações da população local com o exército.

Tropas do exército que lutaram na guerra passam por União da Vitória, no Paraná.

A segunda parte – “Milenarismo e memória” – discute questões como messianismo, religiosidade popular e destaca a figura do líder religioso do Contestado, que ficou conhecido como José Maria. O curandeiro Miguel Lucena de Boaventura, seu nome de batismo, foi mistificado pela população local e identificado com outro líder religioso, João Maria, que viveu antes e era tido como santo.

A penúltima parte, “Etnia e discurso regional”, trata das etnias envolvidas na guerra – desde caboclos a imigrantes poloneses e alemães –, do discurso regional e da visão que a imprensa da época tinha do movimento. “Devido à cobertura tendenciosa da imprensa, o caboclo passou a ser visto como bandido”, destaca o organizador da obra.

A última parte de A guerra santa revisitada reúne comentários sobre as imagens do conflito e apresenta fotos de Claro Jansson (1877-1954), fotógrafo sueco que morou na região de Três Barras (SC) e União da Vitória na época da guerra. O último texto, de Dorothy Jansson Moretti, é uma apresentação do trabalho de Jansson, seu pai.

A idéia de organizar uma coletânea sobre o movimento do Contestado surgiu em 2003, quando vários historiadores interessados na questão se encontraram em eventos científicos promovidos pela Anpuh, a Associação Nacional de História. Machado e Espig perceberam que a reunião dos vários enfoques dados ao conflito renderia um livro de grande interesse. No início de 2008, o trabalho de seleção dos artigos estava pronto. O título remete à obra A guerra santa no Brasil – O movimento messiânico do Contestado, de 1957, um dos primeiros trabalhos de fôlego sobre o tema, realizado pela socióloga paulista Maria Isaura Pereira de Queiroz.

  
A guerra santa revisitada – Novos estudos
sobre o movimento do Contestado
Márcia Janet Espig e Paulo Pinheiro Machado (org.)
Florianópolis, 2008, Editora UFSC
331 páginas – R$ 38,00
Tel.: (48) 3721-9408 / 3721-9686

Ellen Nemitz
Especial para a CH On-line / PR
14/10/2008