Não é preciso ser alarmista nem se enveredar por cenários pessimistas sobre mudanças climáticas para perceber: a situação da água é preocupante em todo o mundo. A população mundial quase triplicou desde 1950 e o desenvolvimento trouxe novas demandas de produção e novos hábitos de consumo e higiene, o que pressiona cada vez mais nossos recursos naturais, em especial a água. No Nordeste do Brasil, onde a preocupação com a seca vem de longa data, está em curso uma das piores estiagens das últimas décadas. Mas o que deve ser feito para adaptar a região e promover seu desenvolvimento mesmo sob tais condições?
“Hoje, um bilhão de pessoas não têm acesso seguro à água para beber e as áreas com tendência à desertificação no mundo têm crescido, inclusive no semiárido nordestino, por fatores como o mau uso do solo e a derrubada da cobertura vegetal”, avaliou o engenheiro José Almir Cirilo, secretário de recursos hídricos e energéticos de Pernambuco, durante mesa-redonda realizada na 65ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. No contexto global, a questão já vem gerando tensões internacionais. No Nordeste, não se fala em guerra, mas a seca atual tem deixado o clima mais ‘quente’, segundo Cirilo, com disputas locais pela utilização de reservatórios ainda não exauridos.
No total, o semiárido nordestino abriga 22 milhões de pessoas, quase metade delas em áreas rurais. Ao contrário do que se pode pensar, o histórico problema na região não acontece por falta de chuvas, como explicou o meteorologista Antonio Divino Moura, diretor do Instituto Nacional de Meteorologia. “O problema seria, então, a gestão dos recursos? Também, mas não só isso”, afirmou. “Existe um conjunto de fatores desfavoráveis: chuvas muito mal distribuídas, evaporação muito intensa, solos rasos que acumulam menos água, salinização da água pela presença de rochas cristalinas e falta de aquíferos de grande porte.”
As perspectivas de mudanças climáticas podem agravar o cenário. Um estudo feito por Cirilo avaliou o possível efeito do aquecimento global sobre as barragens do rio São Francisco: considerando apenas o aumento do intervalo de dias sem chuva, sem redução do volume pluviométrico total, a pesquisa mostrou que os mananciais passariam mais tempo secos, encheriam mais rápido e perderiam mais água – uma redução que poderia chegar a 30% no volume desses reservatórios.
O clima sob análise
Um importante fator para prevenir o impacto negativo das secas é uma acurada previsão meteorológica, que consiga prever esses acontecimentos intensos. Moura explicou que essa ciência ainda é relativamente nova no Brasil e os conhecimentos sobre o clima do Nordeste também, mas já têm contribuído bastante para a tomada de decisão e a adaptação da região em busca de um desenvolvimento sustentável mesmo diante de condições severas.
“Há 30 anos ninguém estudava o Nordeste, mas hoje existe mais conhecimento sobre a dinâmica climática da região, a importância de cada componente, é possível identificar tendências de seca e inundações”, destacou Moura. Um passo importante para conhecer melhor o clima da região, segundo o meteorologista, é estudar a história – um modelo climático melhor do que qualquer simulação. “Recuperar essa memória é importante para entender a variabilidade natural do sistema e avaliar possíveis mudanças climáticas”, afirmou. “No entanto, a tarefa é complicada: temos acervos com mais de 12 milhões de documentos, desde a época do Império, mas tudo em papel e em estado muito frágil.”
Para Moura, o maior conhecimento meteorológico ajuda a explicar, por exemplo, os diferentes impactos da seca de 1877, considerada a pior da história por ter causado milhares de mortes, e da seca de 1998, também muito grave, mas sem casos fatais. Cirilo destacou outros dois fatores que ajudaram a minimizar o drama nos últimos anos: o desenvolvimento do país e os benefícios sociais concedidos aos habitantes da região.
Mitigação e adaptação
Desde o ano passado, no entanto, o Nordeste vem sendo fustigado por uma forte seca, após alguns anos de refresco – de fevereiro a abril de 2013, choveu menos de 50% do normal em diversas regiões, índice muito abaixo da média histórica. Para tentar fugir desse ciclo sem fim, muitas tecnologias têm sido empregadas na região e está em andamento uma das maiores obras hidráulicas do mundo, a transposição do rio São Francisco.
Segundo Cirilo, medidas simples já podem significar um grande avanço. “Toda casa deveria ter cisternas para acumular água da chuva, precisamos investir em poços, barragens subterrâneas, equipamentos de dessalinização da água para extrair o recurso de leitos cristalinos e no terraceamento para otimizar recursos hídricos na agricultura”, exemplificou. Entre os gastos, há o custo de manutenção dos equipamentos – para o engenheiro, um emprego de recursos muito mais eficiente do que a contratação de caminhões-pipa.
A falta de adequação das atividades econômicas da região à seca compôs, segundo Cirilo, a ‘cara’ do evento atual, marcada pelas imagens impactantes do gado morto. “A área do agreste não é boa para produzir gado bovino”, afirmou. “Mas, com a melhora da qualidade de vida e vários anos de invernos chuvosos, o otimismo aumentou e as pessoas investiram em pequena pecuária, que recebeu o primeiro e mais severo impacto do clima.”
Pensar em alternativas de combate à seca em longo prazo passa, segundo o engenheiro, pela busca de opções para suprir a necessidade de água já existente. “Em Pernambuco, por exemplo, a única forma de atender a demanda de cidades como Feira de Santana e Caruaru, com mais de 300 mil habitantes, é a transposição das águas do São Francisco”, avaliou. “Estamos apostando todas as nossas fichas nisso, não temos mais recursos hídricos locais a serem aproveitados, não há mais onde construir barragens.” Apesar do otimismo do secretário de recursos hídricos e energéticos de Pernambuco, a obra, orçada em R$ 8,3 bilhões, foi severamente criticada em outra mesa-redonda na reunião da SBPC.
Para adaptar de fato a região à seca, no entanto, Cirilo destacou a necessidade de incentivar atividades econômicas que levem desenvolvimento ao interior. “É o que pretendemos fazer em parte do agreste com a transposição: estimular a produção de alimentos, a agroindústria, onde os solos são mais favoráveis”, explicou. “Nesse caso, não é só trazer a água, mas investir no armazenamento, processamento e escoamento; por isso, vai ser implementada a ferrovia transnordestina, que ligará o interior aos portos, a preços competitivos”, completou.
Marcelo Garcia
Ciência Hoje On-line