A união faz o Nobel

Depois de muitos anos com os olhos voltados para conflitos e questões humanitárias ao redor do globo, o comitê do Nobel volta sua atenção para uma ameaça muito mais próxima, a grave crise que tem abalado a estabilidade do bloco europeu. A surpreendente escolha da União Europeia para o Nobel da Paz de 2012 pode parecer inusitada, uma vez que o bloco passa pela maior crise de sua existência, mas, justamente por isso, se torna mais simbólica. A comunidade de países representa um projeto de superação de hostilidades e integração entre nações e sua estabilidade pode ser fundamental para diversas questões relativas à paz mundial.

Trata-se de um posicionamento claro do comitê nesse momento delicado, que reafirma a necessidade de socorrer os países em crise e aprofundar a união no continente

Para o historiador Francisco Carlos Teixeira da Silva, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), apesar de parecer irônico à primeira vista, é totalmente compreensível que a homenagem seja feita nesse momento. “É preciso lembrar que o comitê responsável pelo prêmio é europeu e que, apesar da crise econômica ser mundial, é difícil ter uma noção, aqui no Brasil, da dramaticidade da situação vivida na Europa, em especial em países como Grécia, Portugal e Espanha”, avalia. “Trata-se de um posicionamento claro do comitê nesse momento delicado, que reafirma a necessidade de socorrer os países em crise e aprofundar a união no continente.”

Criada em 1958 para incentivar a interação econômica entre os países europeus – com o pressuposto de que nações com relações comerciais se tornam economicamente dependentes, diminuindo o risco de conflito –, a Comunidade Econômica Europeia (CEE) era inicialmente constituída por seis Estados – Alemanha, Bélgica, França, Itália, Luxemburgo e Países Baixos. Ela representou um passo decisivo para a aproximação de dois inimigos históricos: França e Alemanha, nações que protagonizaram, nos séculos 19 e 20, três importantes guerras, a franco-prussiana  e as primeira e segunda guerras mundiais.

A justificativa oficial do prêmio ressalta justamente esse caráter reconciliatório do bloco. “Por cerca de seis décadas contribuindo para o avanço da paz, da reconciliação, da democracia e dos direitos humanos na Europa.”

De acordo com a imprensa internacional, a decisão pegou até o presidente da Comissão Europeia, José Manuel Barroso, de surpresa. Ele declarou que o Nobel é um reconhecimento dos profundos motivos políticos por trás do projeto e uma grande honra para todos os 500 milhões de cidadãos do bloco.

Segunda Guerra
Inimigas históricas, França e Alemanha foram pivôs de três grandes guerras nos séculos 19 e 20, mas agora ocupam, juntas, posição de liderança no continente. (foto: Wikimedia Common)

Para Jacques Delors, ex-presidente da comissão, o prêmio é uma mensagem moral e política, que reconhece o esforço dos países em superar seu passado e que chega num momento de muitas críticas e prognósticos desfavoráveis à União Europeia. A chanceler da Alemanha Angela Merkel afirmou que o prêmio encoraja a Europa a manter um projeto que pacifica o continente.

A repercussão, no entanto, não foi unânime. O líder do partido independente do Reino Unido Nigel Farage criticou a escolha do comitê. “Isso mostra como os noruegueses têm senso de humor”, afirmou. Segundo ele, a União Europeia criou pobreza e desemprego para milhões e nos últimos dois anos causou animosidade entre os países do norte e do sul do continente.

Um detalhe curioso: a Noruega, responsável pela entrega do prêmio, já recusou entrar para a União Europeia por duas vezes – e parece que a premiação não será capaz de fazer seus políticos mudarem de opinião.

Crise e aprofundamento

A crise que afeta a Europa nos últimos anos tem provocado a desaceleração das economias dos países do bloco, taxas de desemprego que chegam aos 25% (e até a 50% entre os jovens) e graves consequências sociais. “O sentimento de grande parte da população, em especial dos jovens, é de frustração, o que tem estimulado o fortalecimento de partidos políticos e de posicionamentos radicais, além de movimentos neonazistas e xenófobos por todo o continente”, afirma o historiador Francisco Carlos Teixeira da Silva.

Os problemas na Europa têm levado economistas e governantes a cogitar a saída das nações com maiores problemas, como a Grécia, do bloco – uma decisão errada, que aumentaria a crise do país, na avaliação de Silva.  Ele classifica a intenção como uma “bobagem monetarista”, que não leva em consideração as questões históricas e políticas relacionadas à estabilidade do grupo.

“É algo que os economistas, em especial brasileiros, não conseguem entender, pois só têm uma visão econômica da crise, não consideram a dimensão histórica do bloco”, defende. “Se a União acaba, voltamos a um cenário anterior, de enfrentamento das nações. Não tem preço resgatar a Grécia e os demais países em crise.”

Crise na Europa
Situação econômica delicada e alto desemprego têm gerado protestos intensos contra a ‘ditadura financeira’ em países como Portugal, Grécia e Espanha. (foto: Julien Lagarde/ Flickr – CC BY-NC-ND 2.0)

Para o historiador – e para muitos líderes políticos do continente –, a solução é aprofundar a unificação. “Acredito que, de alguma forma, o prêmio Nobel irá constranger moralmente os países centrais do bloco no sentido de estimulá-los a serem mais flexíveis com as nações em crise, para estimular a manutenção da União”, avalia Silva. “Vai ser custoso e doloroso, mas é absolutamente necessário”, decreta.

Apesar de o desafio ser grande, já há sinais de reconhecimento da importância de se aprofundar a união. A própria chanceler alemã Angela Merkel – muito criticada pelas políticas de austeridade propostas por seu governo – defendeu recentemente uma reaproximação da Grécia e debate com o presidente da França François Hollande os passos dessa integração.

Pela paz mundial

Como um bloco, a União Europeia acumula o maior PIB do mundo, a maior população do Ocidente e provavelmente constitui-se no maior centro de pesquisa e educação do planeta. Além disso, é um grande investidor e parceiro comercial de diversos países, como a China e o Brasil, que têm suas economias profundamente ligadas aos destinos dos países europeus.

Se inimigos tão encarniçados puderam superar sua história pregressa  para selar uma amizade tão forte e próspera, por que países como Israel e Palestina não poderiam?

Ela tem atuado ainda na mediação dos conflitos entre israelenses e palestinos e em países de todo o Oriente Médio, como Líbano, Líbia e Egito, além de buscar uma solução pacífica para a questão nuclear iraniana e desempenhar papel de ajuda humanitária e de manutenção de instituições da África.

“França e Inglaterra mantêm iniciativas de assistência e de formação de pessoal em diversos países, além integrarem forças de paz presentes em muitos países da região, como Serra Leoa e Somália”, afirma Silva. “Se o bloco deixar de existir, diversas questões fundamentais à paz mundial perdem seu principal mediador.”

Ainda na avaliação do historiador, a União Europeia pode servir de modelo e de projeto de futuro possível para muitas regiões, sobretudo para aquelas que vivem hoje em conflito. “Se inimigos tão encarniçados puderam superar sua história pregressa e sua hostilidade mútua para selar uma amizade tão forte e próspera, por que países como Israel e Palestina não poderiam?”


Marcelo Garcia

Ciência Hoje On-line