Proteção em nanocápsulas

Ela está no vidro, nas areias das praias, no cimento e até nos temperos em pó que comemos. A sílica, uma das substâncias mais abundantes na Terra, pode ser uma ferramenta chave para o desenvolvimento de novas vacinas orais que poderão substituir as injetáveis disponíveis hoje. A aposta é fruto de pesquisas que vêm sendo desenvolvidas há 20 anos por pesquisadores do Instituto Butantan e da Universidade de São Paulo (USP) em parceria com o laboratório farmeacêutico Cristália. 

A ideia dos pesquisadores é usar nanocápsulas de sílica para alojar a vacina que será aplicada em gotas, como hoje acontece com a vacina contra a paralisia infantil (poliomielite). As nanocápsulas nada mais são que diminutas ‘forminhas’ hexagonais com cerca de 5 nanômetros – 20 mil vezes menores que um fio de cabelo – que absorvem e guardam em seu interior a vacina desejada.

Segundo o epidemiologista Osvaldo Sant’anna, pesquisador do Instituto Butantan que proferiu palestra durante a 65ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a grande vantagem de usar a vacina encapsulada é que, desse modo, ela consegue passar pela barreira do estômago, que contém ácidos, e chegar até o intestino, onde é capturada por células do sistema imunológico. Sem essa proteção, as vacinas, compostas de moléculas orgânicas, acabam sendo degradadas pelo estômago. 

A vacina encapsulada consegue passar pela barreira do estômago, que contém ácidos, e chegar até o intestino, onde é capturada por células do sistema imunológico

Ainda não existe no mercado vacina oral que ultrapasse esse obstáculo. A vacina contra a poliomielite é a única aplicada em gotas porque é absorvida antes de chegar ao estômago, ainda no esôfago. Sant’anna explica que o intestino é o melhor alvo para a imunização, pois está repleto de células de defesa, como os macrófagos, que logo absorvem a vacina e conferem resistência ao organismo.

“A pele tem células do sistema imune sempre prontas para reagir ao ataque de agentes infecciosos; só que, nas vacinas injetáveis, há um gasto de energia maior do que nas orais para que essas células da pele caminhem até o local da picada e entrem em contato com a vacina”, comparou o epidemiologista. “A sílica possibilita que a vacina oral atinja o centro nevrálgico do sistema imune – o intestino –, e obtenha reposta tão boa ou melhor que a da vacina subcutânea.”

Bons resultados 

O pesquisador e sua equipe foram um dos primeiros no mundo a fazer estudos com nanotecnologia para imunização. Desde o início da pesquisa, o grupo conduziu diversos testes com animais usando a sílica para aplicar a vacina contra hepatite B.

Eles perceberam que, além de levar a vacina até o intestino, onde ela é absorvida por osmose, a sílica potencializa a ação do sistema imune. As células de defesa identificam o composto como estranho ao organismo e, por isso, atuam com mais intensidade para capturá-lo.

Vacina de sílica
Nanocápsulas de sílica em forma de hexágono (à esquerda) foram preenchidas com vacina contra hepatite B (à direita). (foto: Osvaldo Sant’anna)

“Há certos vírus, por exemplo, para os quais o corpo não produz anticorpos suficientes mesmo que os microrganismos estejam em contato com o intestino, mas, com a introdução da sílica, vimos que a produção de anticorpos em camundongos foi alta”, disse Sant’anna.

Em teoria, a estratégia da sílica pode ser aplicada a qualquer vacina desenvolvida contra qualquer doença. O pesquisador ressaltou ainda que é possível combinar mais de uma vacina nas nanocápsulas. A tática poderia reduzir consideravelmente os custos da vacinação em massa, possibilitando aumentar o número de pessoas imunizadas.

Segundo o pesquisador, a ingestão da sílica não apresenta perigo e ela é excretada nas fezes. “Comemos sílica durante toda a vida, muitos temperos em pó adicionam sílica na composição para evitar a formação de umidade, por isso, acredito que não vai ser difícil conseguir a aprovação das autoridades sanitárias para testes com humanos.”

É possível combinar mais de uma vacina nas nanocápsulas

A patente da técnica foi doada à nação, de modo ela pode ser usada pelo governo brasileiro sem custos. Os testes clínicos já estão previstos e, se aprovados, Sant’anna estima que a vacina esteja pronta para uso em 2020. Mas ele teme que o projeto sofra pressão da indústria farmacêutica internacional. 

“Vamos ter dificuldades porque as multinacionais vão querer embarreirar nosso projeto”, afirmou o conferencista. “Se eu tirar a seringa de uma vacina contra a hepatite B, por exemplo, em que três doses são aplicadas, vai haver uma perda de milhões de dólares para a indústria. Com nossa vacina, só será necessário um frasquinho com gotas.”

Tendência mundial

A pesquisa por novas formas de aplicação de vacinas mais eficientes e sem dor tem crescido pelo mundo. A vacina do Butantan não é a única a propor uma solução para vencer a barreira do ácido estomacal. Pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) estudam nanotubos de carbono para alojar imunoterápicos e cientistas da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, testam o uso de bactérias inativadas para carregar vacinas até o intestino.

Sant’anna reconhece a importância dessas pesquisas, mas acredita que a sílica é a melhor saída e a mais simples. “Trata-se de um composto simples, disponível e que não briga com o nosso organismo”, observou. 

“Já o carbono é um componente do nosso organismo e muito provavelmente vai ser destruído no estômago; o uso de bactérias me parece arriscado, uma vez que a pessoa corre o risco de infecção, além de ser mais complexo de ser aprovado para humanos. Não há nada que eu faça no laboratório que a natureza já não tenha feito; meu trabalho é baseado na observação da natureza e ela nos mostra que o caminho mais simples é o melhor.”

Sofia Moutinho
Ciência Hoje On-line

 

Veja a cobertura completa da 65ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e confira nossa galeria de fotos do evento.