Quanto mais retratação melhor

Farmacologista sul-coreano falsifica endereços eletrônicos para revisar os próprios artigos. Psicólogo holandês Diederik Stapel, com 53 artigos invalidados por falsificação de dados, se acerta com a Justiça e não irá para a cadeia. Especialista em anestesia japonês Yoshitaka Fujii bate o próprio recorde de trabalhos retirados de publicação: são 183, e não 172.

Enquanto isso, no Brasil, o caso de Rui Curi, ex-diretor do Instituto de Ciências Biomédicas da USP acusado de má conduta científica, com dois artigos despublicados e quatro correções até o momento, continua sem solução, assim como o maior episódio de fraude científica do país.

Estas são apenas algumas das notícias mais recentes dos bastidores obscuros da ciência. Amplamente divulgadas e comentadas, elas vêm levantando questionamentos sobre a credibilidade do processo corrente de publicação e do próprio empreendimento científico. Mas, afinal, ainda se pode confiar na ciência?

Mas, afinal, ainda se pode confiar na ciência? Em geral, sim

Em geral, sim, defenderam os participantes da sessão sobre o tema realizada na 8ª Conferência Mundial de Jornalistas de Ciência, em Helsinque (Finlândia), na semana passada. Para os especialistas que debateram a questão, o aumento no número e na visibilidade das retratações (quando artigos são invalidados e retirados de publicação), sejam quais forem os motivos, é sinal de que a comunidade está mais vigilante.

Entre ameaças e recompensas

Ivan Oransky, editor-executivo da Reuters Health, é um dos que dedica mais atenção às retratações científicas. Com seu colega Adam Marcus, criou em 2010 o blogue ‘Retraction Watch’, em que divulga os artigos despublicados, explicando o porquê das decisões e avaliando o posicionamento dos periódicos diante das saias-justas.

Chamam a atenção a quantidade e a frequência das postagens no blogue. Oransky confessa que, no início, não sabia se ia ter material suficiente para manter a iniciativa, mas, hoje, diz convicto: cobrimos apenas uma parte do universo das retratações e sabemos ainda pouco sobre o que acontece nos meandros da publicação científica.

Uma de suas principais críticas diz respeito à falta de transparência dos periódicos. Ao buscar explicação para as retratações, é comum se deparar com declarações tão vagas quanto: “sobreposição sem atribuição”, “a duplicação de um artigo que já fora publicado por outros autores”, “problemas graves de originalidade”. Ou simplesmente: “não é da sua conta”, como já ouviu do editor do Annals of Thoracic Surgery.

Ivan Oransky na WCSJ2013
Ivan Oransky, editor-executivo da Reuters Health e cofundador do ‘Retraction Watch’, é um dos mais atuantes quando o assunto é retratação. Na Conferência Mundial de Jornalistas de Ciência, promoveu a sessão ‘Ainda podemos confiar na ciência?’, em que apresentou sua experiência à frente do blogue detrator. (foto: @WCSJ2013)

Mas parece que o incansável trabalho do ‘Retraction Watch’ – e o de congêneres como o ‘Science Fraud’ e o ‘Copy, Shake, Paste’ – e o crescente interesse acadêmico pelos erros e os casos de má conduta na ciência têm sido recompensados.

A mudança de postura de alguns periódicos indica uma maior conscientização em relação ao problema. A Sociedade Americana de Bioquímica e Biologia Molecular (ASBMB, na sigla em inglês), por exemplo, decidiu contratar um gerente de ética para supervisionar todo o processo de publicação de seus periódicos.

Mas nem todo mundo está satisfeito com a crescente exposição dos frutos podres da ciência, principalmente aqueles que têm sua conduta questionada

Em abril deste ano, a Nature anunciou nova política de revisão e publicação de artigos em seus periódicos, com o objetivo de apresentar relatos mais precisos e bem detalhados dos métodos envolvidos nos trabalhos que publica e de garantir a replicabilidade de seus resultados – o que deve diminuir a incidência de ‘problemas’ no conteúdo de suas publicações.

A comunidade científica também parece preocupada e começa a tomar medidas na mesma direção. Oransky destaca o Reproducibility Project (projeto de reprodutibilidade, em português), um esforço coletivo de cientistas de se estimar, empiricamente, a reprodutibilidade de uma amostra da literatura científica.

Mas nem todo mundo está satisfeito com a crescente exposição dos frutos podres da ciência, principalmente aqueles que têm sua conduta questionada. No início deste ano, o blogue ‘Science Fraud’ foi interrompido depois de seu autor, Paul Brookes, ter recebido ameaças legais, inclusive de um pesquisador brasileiro.

Em seu último post, ele desabafa:

“Parece que ‘Science Fraud’ não está mais sozinho, tanto o ‘Retraction Watch’ quanto o ‘Copy, Shake, Paste’ foram recentemente alvo de ameaças legais. Embora esses sites tenham optado por seguir adiante, eu não tenho os recursos (tempo/ dinheiro/vontade). Isso não quer dizer que eu ache que as ameaças legais feitas ao ‘Science Fraud’ tenham qualquer base na realidade; é apenas que eu tenho coisas mais importantes para tratar. Coisas que pagam as contas. Coisas que não resultam em envelopes estranhos aparecendo no meu endereço de casa. Coisas que não afetam o meu sono.”

 

Boas e úteis

Para Richard Van Noorden, editor-assistente de notícias da Nature, as retratações, embora estejam muito em voga, não têm significância estatística. Com base nos principais bancos de dados científicos – Scopus, da Elsevier; Web of Knowledge, da Thomson Reuters; e PubMed –, ele calcula que, de cerca de 30 mil artigos publicados por semana, algo entre 200 e 255 serão corrigidos e apenas de cinco a dez serão invalidados.

A seu ver, as retratações ganham a atenção que ganham porque rendem boas histórias. Já Daniele Fanelli, da Universidade de Edimburgo, no Reino Unido, muito citado por seu trabalho sobre a frequência com que cientistas fabricam e falsificam dados, as enxerga como um bom serviço para a pesquisa científica. 

Fanelli: “Não há evidência suficiente para se afirmar que a má conduta na ciência está crescendo”

Na sua avaliação, as invalidações de artigos crescem principalmente porque os cientistas estão se tornando mais conscientes e responsáveis em relação à má conduta, e não porque estão trapaceando mais, como alguns interpretam estudo publicado recentemente na PNAS apontando um crescimento histórico na taxa de artigos retirados por motivo de fraude.

“Não há evidência suficiente para se afirmar que a má conduta na ciência está crescendo”, afirma. Em artigo de sua autoria, que se encontra no momento em processo de revisão, ele mostra, por um lado, que o número de correções e de retratações não aumentou por periódico e, por outro, que as publicações que despublicam artigos aumentaram muito em número.

“Podemos confiar totalmente na ciência? Não necessariamente. Mas também não há evidências para que acreditemos menos nela”, conclui. 

 

Carla Almeida*
Ciência Hoje On-line

* A jornalista viajou para Helsinque a convite da Federação Mundial de Jornalistas de Ciência (WFSJ, na sigla em inglês)