Quasicristais reconhecidos

Em 1982, o físico israelense Daniel Shechtman bateu de frente com a comunidade científica ao defender a existência de uma estrutura molecular nunca antes descrita, que ficaria conhecida como quasicristal (ou quase-cristal). Alvo de críticas de colegas de respeito, como o químico Linus Pauling (1901-1994), Shechtman acabou sendo ‘convidado a deixar’ seu grupo de pesquisa.

Mas seus apontamentos estavam corretos. Todos os céticos tiveram de rever suas convicções, e hoje, após quase 30 anos do início da discussão, o israelense viu sua descoberta receber o reconhecimento máximo. Aos 70 anos, ganhou sozinho o Nobel de Química de 2011 e 10 milhões de coroas suecas (cerca de 2,6 milhões de reais).

A polêmica ocorreu porque até então se acreditava que os átomos de qualquer matéria sólida ficavam agrupados em cristais com padrões de simetria que se repetiam periodicamente. “Podia haver simetria rotacional de quatro ou seis eixos, mas alguns tipos de simetria, como de cinco, sete, 10 ou 12 eixos eram considerados impossíveis”, explica o físico Daniel Ugarte, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Estrutura cristais
A ilustração mostra como padrões com quatro (à esquerda) e seis (à direita) eixos de simetria geram repetições periódicas na estrutura de cristais. Até a descoberta de Shechtman acreditava-se que padrões com cinco eixos de simetria (centro) eram impossíveis. (imagem: Nobel Foundation)

No entanto, um cristal observado no dia 8 de abril de 1982 por Shechtman em seu microscópio eletrônico tinha átomos arranjados em padrões com simetria de 10 eixos. O material sólido, sintético e composto por alumínio e magnésio, se assemelhava, em nível molecular, a mosaicos árabes, que obedecem a regras matemáticas, mas não repetem padrões em nenhum momento. “Essa criatura não pode existir”, teria exclamado o israelense na ocasião.

Depois de confirmar que era aquilo mesmo, o pesquisador publicou sua descoberta em 1984. Muita gente achou que se tratava de um erro. Linus Pauling, por exemplo, dizia que se tratava de cristais sobrepostos. O químico norte-americano jamais aceitou a ideia da existência dos quasicristais. 

O termo ‘quasicristal’ foi cunhado posteriormente pelos físicos Dov Levine e Paul Steinhardt, porque a definição de cristalinidade era insuficiente para definir o novo tipo de sólido.

Daniel Shechtman
O físico israelense Daniel Shechtman. (foto: Technion – Israel Institute of Technology)

Cristal, segundo a União Internacional de Cristalografia, era definido como “uma substância em que os átomos, moléculas ou íons constituintes estão ‘empacotados’ em um padrão regularmente ordenado e de repetição tridimensional”. Em 1992, depois que a descoberta de Shechtman foi comprovada e reconhecida oficialmente, a entidade alterou a definição do termo para englobar também os quasicristais.

A nova concepção – “qualquer sólido que tenha um diagrama de difração essencialmente discreto” – não só incorpora o material observado pelo agora Nobel de Química como deixa espaço para estruturas ainda não conhecidas, mas que eventualmente poderão ser descobertas.

Aplicações

Desde a descoberta de Shechtman em 1982, centenas de quasicristais foram sintetizados em laboratórios de todo o mundo. Testando diferentes ligas metálicas, a empresa sueca Sandvik conseguiu criar um tipo de aço inoxidável extremamente resistente.

A análise da estrutura atômica mostrou que o material é composto por quasicristais rígidos, que funcionam como um tipo de ‘armadura’. O metal, patenteado pela empresa, é usado em lâminas de barbear e em agulhas finas feitas especificamente para cirurgias oftalmológicas.

Quasicristais são usados em materiais termoelétricos, na superfície de frigideiras, entre outras coisas

Quasicristais são usados também em materiais termoelétricos, ou seja, que convertem calor em eletricidade; como substituto do Teflon na superfície de frigideiras; para isolamento térmico de motores, entre outras coisas.

Em 2009, pesquisadores encontraram na Rússia um tipo de mineral composto de alumínio, cobre e ferro, com padrões de simetria de 10 eixos. Foi a primeira vez que se reportou a existência de quasicristais também na natureza.

No Brasil

Em 2002, Shechtman esteve no Brasil para participar da 27ª Assembleia Geral do Conselho Internacional para a Ciência, realizada no Rio de Janeiro. Ficou quase uma semana hospedado em um hotel em Copacabana, com a esposa, e passou por Foz do Iguaçu, no Paraná, antes de deixar o país.

Em entrevista concedida à revista Ciência e Cultura na época, o físico relatou a dificuldade de manter-se convicto de sua descoberta. “Se meus resultados fossem um disparate, eu podia estar colocando minha carreira em risco. Portanto, era atemorizante.” O físico Roberto Belisário, que o entrevistou, conta que, naquele ano, o israelense já havia sido indicado para o Nobel, mas evitava tocar no assunto.

Para Daniel Ugarte, da Unicamp, Shechtman provou ser um bom cientista ao ir contra conceitos estabelecidos. “Ele também achou que tinha feito algo errado, mas então fez vários testes para eliminar qualquer possibilidade de erro”, diz. “Tem que ter inteligência e conhecimento para saber separar uma bobagem de uma grande descoberta.”

Anotações de Shechtman
Imagem observada por Shechtman em seu microscópio eletrônico (à esquerda). À direita, reprodução da anotação feita pelo físico em seu caderno, em 8 de abril de 1982: “10 dobras???”, referindo-se à quantidade de eixos de simetria da estrutura. (imagens: Nobel Foundation; www.quasi.iastate.edu/discovery.html)

Ugarte esteve com Shechtman em agosto passado, quando os dois participaram do XX International Material Research Congress (Congresso Internacional de Pesquisa de Materiais), em Cancún, no México.

Em palestra plenária durante o evento, o israelense reclamou, em tom de brincadeira, que todos os responsáveis por grandes descobertas dos anos 1980, como a dos fulerenos e da supercondutividade em alta temperatura, haviam ganhado o Nobel, menos ele. “Apesar disso não parecia nem um pouco uma pessoa convencida por causa de seu feito”, relata o brasileiro.

“Essa experiência me ensinou que um bom cientista é um cientista humilde”, explicou o laureado hoje, em entrevista a Adam Smith, diretor editorial de mídia da Fundação Nobel.

Shechtman é o quarto israelense a ser laureado com o prêmio de química. A última, Ada Yonath, recebeu o prêmio há dois anos. Os outros dois são Aaron Ciechanover e Avram Hershko, colegas de Shechtman no Technion – Instituto de Tecnologia de Israel, em Haifa.


Célio Yano

Ciência Hoje On-line/ PR