Quem tem internet vai a Roma

O que acontece quando misturamos arqueologia e modernas técnicas de realidade virtual? Um mergulho no passado de nossa civilização, é claro! É isso que propõem alguns projetos do Laboratório de Arqueologia Romana Provincial da Universidade de São Paulo (Larp/USP), pioneiro no Brasil na área da ciberarqueologia. As iniciativas, que permitem uma visita virtual à Roma do século 4 e um passeio interativo pela mansão de um senador romano do século 1, podem servir como ferramenta didática e representar um primeiro passo para novos projetos interativos na arqueologia brasileira.

Visitar Roma é um exercício de atenção: cada esquina dobrada pode esconder ruínas de milhares de anos. A aura da cidade pulsa história e tradição, nos lembra a todo momento que estamos num dos berços milenares da civilização ocidental. Por isso, é muito interessante o exercício proposto por Roma 360, um simulador que permite navegar pela capital mais ou menos como era nessa data.

Numa perspectiva panorâmica, o visitante pode observar o Coliseu, os grandes templos da cidade e a cúria, onde o destino de boa parte do mundo era decidido – cada área marcada com uma cor diferente: vermelho para construções públicas de lazer, azul para religiosas e verde para políticas. “Roma é bem mais antiga do que isso, mas optamos por essa época porque há mais registros arqueológicos de sua arquitetura”, explica Alex Martire, arqueólogo coordenador do projeto. “O número 360 também remete a 360º, pois é possível percorrer o cenário livremente.”

Roma 360
No aplicativo Roma 360, é possível observar as construções romanas numa perspectiva panorâmica. (imagem: Larp/ USP)

O modelo digital foi criado com base num levantamento bibliográfico, em especial num atlas histórico de 1923 que retrata a arquitetura romana no século 4, além de estudos e imagens da cidade dos 14 pesquisadores do Larp, que trabalharam em conjunto na criação do modelo. Uma das curiosidades é o desenho caótico da capital: ao contrário de muitas povoações romanas em outras partes do mundo, organizadas em linhas retas, como um tabuleiro, Roma cresceu sem planejamento. “Bem parecido com muitas cidades brasileiras, que também não têm planejamento”, diz Martire.

Ao contrário de muitas povoações romanas em outras partes do mundo, organizadas em linhas retas, Roma cresceu sem planejamento

Outro projeto, Domus, nos leva mais fundo à intimidade de Roma – ao interior de uma mansão romana, um modelo cujos cômodos são decorados com objetos e afrescos de diferentes épocas desse império. Textos de apoio explicam detalhes da construção e do modo de vida dos romanos e o programa conta ainda com imagens atuais dos locais e dicas de leituras adicionais.

“Utilizamos como modelo mansões de Pompeia, destruída pela erupção do vulcão Vesúvio, mas cujas construções foram preservadas pela lava”, conta o arqueólogo. “Um ponto interessante é ver que nossas casas são bem diferentes daquelas, mas herdaram certas características; é muito elucidativo fazer essa ligação entre passado e presente.”

Ciberarqueologia: passado e futuro

Os modelos, é claro, não são perfeitos. Apesar da competente reconstrução urbana, para alguns Roma 360 pode parecer mais com uma maquete da Roma imperial do que com a cidade real, uma vez que opta por representá-la sem cores, em preto e branco, e com detalhes apenas dos prédios principais. “A ideia era dar um estilo ao aplicativo, remeter a esboços de lápis”, conta Martire. “Dessa forma, também fica mais fácil para o usuário encontrar os edifícios que se destacam.” A opção, no entanto, torna difícil admirar a imponência de estruturas como o Coliseu e desfaz a aura de drama e vivacidade que poderia caracterizar estruturas que hoje são apenas colunas e ruínas.

Martire, responsável por tirar os modelos digitais do papel, utilizou programas empregados em modernas animações e jogos digitais para modelar e criar as texturas dos objetos e construções e para dar mobilidade aos cenários. “Tecnicamente, é impossível competir com a sofisticação dos jogos, mas são experiências que se complementam; adoro jogar em especial aqueles que têm um cuidado maior com a reconstrução histórica”, pondera o arqueólogo. “Diferente dos games, a ideia dos nossos projetos é proporcionar uma experiência livre, não há um roteiro ou missões.”

Tecnologia de animação
A tecnologia utilizada na construção dos modelos é a mesma aplicada em animações e jogos de computador modernos. (imagem: Larp/ USP)

As iniciativas pretendem ser acessíveis a um público amplo, de estudantes a professores universitários. Para o segundo semestre deste ano, o laboratório está desenvolvendo um projeto educativo em parceria com o Museu de Arqueologia e Etnologia da USP voltado para alunos dos ensinos médio e fundamental. “Os modelos podem ser usados como recurso didático em aulas de história ou geografia, por exemplo”, avalia Martire. “Precisamos despertar o interesse dos jovens por esse período, pois herdamos muitos conhecimentos dos romanos, na arquitetura, na engenharia, no direito e em muitas outras áreas.”

Martire: “Os modelos podem ser usados como recurso didático em aulas de história ou geografia, por exemplo”

Domus e Roma 360 estão entre as primeiras iniciativas brasileiras na fronteira da ciberarqueologia, que vem crescendo na última década no mundo e utiliza tecnologias digitais para reconstrução e simulação interativa na arqueologia. “Em geral, estudos desse tipo escaneiam sítios arqueológicos e remontam a região virtualmente”, explica Martire. “Há duas grandes vantagens no processo: o registro preciso de cada passo da escavação e as possibilidades de divulgação, com a criação de espaços de realidade virtual imersiva, como o da Universidade Duke, nos Estados Unidos, por exemplo.”

O futuro a Júpiter pertence

No caso brasileiro, os aplicativos foram desenvolvidos a partir da expertise dos pesquisadores do Larp. “Em meu doutorado, desenvolvo o que talvez seja realmente o primeiro estudo nacional na área: pesquiso os sítios de mineração do império romano do século 2 em Portugal, para reconstruí-los digitalmente no futuro.” Anteriormente, o arqueólogo também desenvolveu um modelo digital genérico de um banho romano.

Ainda para este ano, uma das propostas do laboratório é adaptar o Domus para outros suportes, que ampliem a experiência, como o uso de recursos de realidade aumentada. “A partir de um cartão com a planta da mansão, o usuário poderá utilizar seu smartphone para vê-la ‘sair do papel’, inclusive com personagens em movimento”, promete Martire. “É um recurso portátil e que permite uma experiência mais coletiva.”

Projeto Domus
A visita à mansão de um senador de Roma disponibilizada no projeto Domus permite conhecer mais a cultura e os hábitos romanos. (foto: Larp/ USP)

O Roma 360 também deverá ser ampliado para outras províncias romanas estudadas pelo laboratório, como a Hispânia, área onde hoje fica Portugal e Espanha.

O arqueólogo cogita ainda a utilização de tecnologias como óculos Rift, uma das maiores promessas no campo da realidade virtual, e a realização de parcerias com instituições como a Escola Politécnica da USP, para o uso de equipamentos como sua Caverna Digital. “Trata-se de um enorme cubo de realidade virtual, com telas em todos os lados, que permite uma experiência muito intensa”, avalia. “Já o uso de óculos Rift, cuja compatibilidade com o sistema do Domus já testamos, poderia oferecer a experiência de realidade virtual em museus por um custo mais acessível, utilizando nossos cenários ou outros que venham a ser construídos, inclusive do Brasil.”

Para experimentar Roma 360 e Domus, basta acessar o site do laboratório. Quem sabe num futuro não muito distante ‘viajar no tempo’ e percorrer livremente nossos cenários históricos favoritos seja uma possibilidade ao alcance de todos nós?

Marcelo Garcia
Ciência Hoje On-line