Tem causado polêmica a novidade da inserção no Currículo Lattes da pergunta relativa à raça ou cor do/a pesquisador/a. Nosso objetivo aqui é, mais uma vez, incentivar o debate em nossa comunidade e tentar avançar algumas questões envolvidas tanto na introdução do quesito, como na reação que ele vem causando.
Em primeiro lugar, cabe considerar que as opções constante deste item estão perfeitamente de acordo com os parâmetros da auto atribuição que vêm norteando a adoção das políticas públicas de inclusão racial no Brasil dos últimos anos. Além disso, queremos destacar que, embora a resposta ao quesito seja obrigatória, há opção para o pesquisador que não queira assim se caracterizar, bastando-lhe escolher a última alternativa, “não desejo declarar”. Dessa forma, resguarda-se a liberdade daqueles que não concordam com a implementação de uma política de delimitação do perfil sócio-racial do pesquisador brasileiro.
Mas vamos à questão de fundo. Muitos estudiosos têm destacado, acertadamente, o fato de raça não ser um conceito cientificamente válido. Em nosso entender não há dúvidas a esse respeito. No entanto, tal constatação não pode eliminar a realidade de uma sociedade brasileira altamente racializada em suas práticas cotidianas e inclusive no que tange ao acesso ao ensino superior e à pesquisa científica.
Julgamos, assim, que, ao lado das investigações que revelam as falácias de um modelo que usou raça de maneira essencial e ontológica (e por isso gerou a prática de determinismos e racismos políticos de toda ordem), é hora de avaliarmos como o desacreditado conceito, baseado em assertivas biológicas há muito ultrapassadas, continua sendo reatualizado e opera socialmente. Se, cientificamente falando, não existem raças – apenas uma, a humana –, no nosso dia a dia raça surge como um potente marcador social de diferença, delimitando hierarquias sociais, culturais e econômicas.
Vale, pois, perguntar se devemos exclusivamente criticar o uso canônico do termo ou se seria importante, igualmente, analisarmos as implicações cotidianas e recorrentes da utilização da categoria raça na prática social, considerando, principalmente, a maneira como esta se inscreve em nossa realidade e, em particular, no contexto universitário brasileiro. Entendido dessa maneira, o termo continua válido e seria preciso avaliar as decorrências da “raça após o racismo”. Falar de raça não significa, em nosso entender, instaurar o racismo ou racializar o cotidiano, o qual, aliás, já se encontra racializado. Falar de raça implica enfrentar o problema sem eufemismos, desvelando as práticas discursivas que pretendem não dizer, dizendo.
O conjunto crítico de livros, ensaios, artigos que faz tempo vêm mostrando o lado perverso do conceito biológico de raça cumpriu e cumpre um papel fundamental no sentido de trazer de volta valores básicos como o universalismo e o humanismo. É por isso que, contando com esses ganhos – com os quais concordamos e nos associamos –, talvez seja o momento de descer também à lógica do particular, das negociações políticas, dos discursos do senso comum que se convertem em práticas socialmente influentes como aquelas desmontadas pelas pesquisas que desnudaram, sem pejas, os perigos do racismo científico. Hoje falamos de novas formas de racismo: o social, o político, aquele que se inscreve nas formas de discriminação mais cotidianas.
Mas voltemos ao documento em pauta. Segundo o CNPq, a adoção do quesito cor/raça encontra-se embasado na Lei 12.228, de 20 de julho de 2010, que instituiu o ‘Estatuto da Igualdade Racial’, cujo objetivo é combater todas as formas de exclusão e discriminação racial ainda vigentes em nosso país. Tal estatuto vem corroborando outros esforços e ações públicas, especificamente voltadas para a inclusão universitária, na forma do sistema de cotas adotado pelas universidades federais, entre outras políticas de inclusão. A iniciativa do CNPq vem, pois, na esteira dessas políticas e pretende utilizar tais dados como base para a elaboração futura de políticas científicas de inclusão sócio-racial.
Na página da instituição consta também que a informação sobre raça será para “uso interno” do CNPq. Por um lado, fica subentendido que tal dado não será exibido no currículo acessado publicamente, o que significa que não se pretende misturar, na esfera pública, a produção docente com esse tipo de caracterização. Aliás, de maneira coerente, o CNPq também não divulga dados pessoais, como endereço e CPF. Por outro lado, é preciso indagar como esse tipo de informação será efetivamente aproveitado. Enfim, é de interesse da comunidade tomar a ‘novidade’ não como resultado, mas como parte de um processo, cabendo a nós, pesquisadores, o papel de interpelar a instituição sobre os usos desses dados.
De toda maneira, e em nossa compreensão, não nos parece que o objetivo do CNPq seja incentivar a radicalização do debate, mas antes iluminar uma cena e evidenciar processos de discriminação facilmente observados por todos aqueles que adentram nossos campi universitários. Não é segredo para ninguém que o pesquisador/a brasileiro/a é majoritariamente branco e, por conseguinte, que os quadros de docentes de nossas universidades estão compostos igualmente, e também majoritariamente, por homens e mulheres brancos. É passível de mérito, portanto, que esse tipo de evidência seja veiculado de maneira aberta e debatido no contexto de nossas políticas públicas, para que a comunidade acadêmica brasileira possa refletir acerca das demandas de uma sociedade cidadã, atenta às desigualdades e cada vez mais avessa aos preconceitos.
Cientistas que somos, é nosso mister produzir pesquisas e dados que possam deixar mais transparentes o perfil econômico, social e por que não racial de nossa comunidade estendida. Não se atropelam iniciativas que visam a melhor conscientização, estudo e compreensão de nossa sociedade antes que elas possam minimamente mostrar suas potencialidades. Desautorizar pesquisas é, à sua maneira, um gesto de obscurantismo. Abertas como são, as investigações, aí sim, poderão se transformar em matéria de análise, escrutínio e avaliação crítica.
Tendo em vista tais argumentos, nos colocamos a favor da iniciativa do CNPq que incluiu o critério racial/cor na definição do perfil do pesquisador/a brasileiro/a. Esperamos que a oportunidade retorne à comunidade acadêmica sob a forma de novos desafios pautados em informações e dados eticamente comprometidos com a pesquisa científica sobre o perfil do/a pesquisador/a, da comunidade acadêmica e sobre políticas públicas de inclusão social.
Lilia Schwarcz
Departamento de Antropologia/ Universidade de São Paulo
Global Scholar (Princeton)
Maria Helena P. T. Machado
Departamento de História/ Universidade de São Paulo