(Re)capítulos da ciência

O empreendimento científico, mesmo refém de crises econômicas, cresce e ganha força. O montante de recursos, pesquisadores, estudos e publicações que mobiliza hoje não tem precedente. São cada vez mais comuns experimentos envolvendo bilhões de dólares e centenas de cientistas. São milhões de artigos publicados anualmente em milhares de periódicos, sem falar em veículos não especializados que divulgam a ciência em todo o mundo – como faz a Ciência Hoje desde 1982.

Podemos dizer que o ano de 2012 é de certo modo um coroamento dessa Big Science. O ‘rei’, no caso, seria o Grande Colisor de Hádrons, o famoso LHC, que, manipulado por um grupo enorme de pessoas, identificou muito provavelmente (as chances são de mais de 99,9 em 100) o tão procurado bóson de Higgs, partícula fundamental para a consolidação do modelo padrão, um dos pilares da física.

Praticamente tudo relativo a esse feito é grandioso, a começar pelo próprio LHC. Orçado em 5,5 bilhões de dólares, o equipamento desenvolvido no Centro Europeu de Pesquisa Nuclear (Cern) tem 27 km de circunferência e pesa 38 mil toneladas. Acelera partículas a aproximadamente 300 mil km/s. Sua equipe é constituída por cerca de 10 mil cientistas de mais de 100 países. Tudo isso – ou melhor, quase tudo – para procurar uma minúscula partícula.

No início, muitos foram contra a construção do LHC – por razões que vão desde o volume exorbitante de dinheiro envolvido até o temor pela criação de buracos negros. É verdade também que alguns cientistas torciam por um desfecho mais ‘empolgante’ – caso o bóson de Higgs não fosse encontrado, seria preciso ir atrás de um novo paradigma.

Mas os aplausos, o champanhe e as lágrimas do próprio Peter Higgs – que previu há mais de quatro décadas a existência de tal partícula – na cerimônia em que a detecção do bóson foi anunciada simbolizam o triunfo de um esforço gigantesco e da ciência de gente grande.

Anúncio bóson de Higgs
Sob aplausos de uma plateia animada, o novo bóson foi anunciado na sede do Cern, na Suíça, em 4 de julho. A cerimônia contou com a presença de Peter Higgs, que previu há mais de quatro décadas a existência do bóson que leva seu nome. (foto: Cern)

Não é todo o ano que a ciência vivencia um feito tão relevante quanto este. Por isso a mais que provável identificação do bóson de Higgs, que certamente constará em qualquer retrospectiva de ciência que se preze, é muito mais do que o grande acontecimento científico de 2012.

Avanços, conflitos e constrangimentos

Mas não só de Higgs viveu a ciência em 2012. Ainda no mundo da física, foram registrados diversos outros feitos dignos de nota. Houve avanços importantes na mecânica quântica, recém-agraciada com o Nobel na área e cada vez mais próxima do tão sonhado computador quântico.

Estudos relevantes contribuíram para o melhor conhecimento da antimatéria, com destaque para experimento realizado na China que registrou transformações pelas quais passam os neutrinos viajando próximos à velocidade da luz. Segundo especialistas, tais registros podem ajudar a explicar por que o universo tem muito mais matéria do que antimatéria.

Falando em neutrinos, o ano da física também foi marcado pelo desfecho de um caso emocionante que desafiou Einstein. O projeto italiano Opera, que havia apresentado no ano passado dados de neutrinos viajando mais rápido do que a luz – uma grave violação da teoria da relatividade especial –, anunciou este ano que tudo não passou de uma falha técnica – má notícia para quem esperava uma revolução na física.

Na astronomia, em meio à enxurrada de dados novos sobre Marte, Mercúrio, Lua e Sol, um robô ganhou os holofotes. O pouso do Curiosity na superfície de Marte em agosto foi amplamente noticiado e acompanhado por uma legião de interessados.

Curiosity
Autorretrato do Curiosity em Marte. O robô da Nasa, que ganhou grande atenção da mídia mundial, já identificou compostos orgânicos que podem indicar vida primitiva no planeta vermelho. (imagem: NASA/JPL-Caltech/MSSS)

Nas ciências biológicas, o ano foi dominado pelas células-tronco, contempladas em outubro com o Nobel de Medicina. Novas terapias com resultados clínicos positivos e estudos sobre fertilidade estiveram entre os fatos que ganharam maior destaque. A criação de óvulos férteis de camundongos a partir de células de pluripotência induzida (iPS) foi dos mais divulgados.

Nessa área, a revista Science destacou ainda, em sua retrospectiva de 2012, o desenvolvimento de novas técnicas de engenharia genética – uma delas possibilitou o sequenciamento do genoma completo do hominídeo de Denisova a partir de um fragmento de osso do dedo de uma menina da espécie; os dados divulgados pelo projeto Encode mostrando que o até então chamado DNA-lixo não é tão descartável assim – pelo contrário; e avanços importantes na interação homem-máquina.

Acontecimentos mais conflituosos ou menos nobres ganharam destaque em outras retrospectivas da ciência em 2012. A Nature, por exemplo, lembrou a condenação de sete sismólogos na Itália por não terem previsto o terremoto que atingiu o país em 2009, na cidade de L’Aquila, matando mais de 300 pessoas. Cientistas de várias partes do mundo saíram em defesa dos acusados, que apelam à justiça italiana.

O periódico destacou ainda a polêmica em torno da publicação de dois artigos sobre o vírus da gripe aviária (H5N1), considerada perigosa por entidades da área de biossegurança e saúde. Após muitas discussões e protestos dos autores dos trabalhos, ambos foram publicados na íntegra – um na Nature e outro na Science.

A The Scientist dedicou um texto especialmente aos escândalos do mundo científico, com destaque para estudo divulgado em outubro mostrando que deslizes éticos em trabalhos científicos são mais comuns do que erros. A pesquisa levanta questionamentos sobre a integridade e credibilidade no meio.

Fracassos ambientais

No que se refere ao meio ambiente, o cenário não foi muito animador. Para quem acompanhou o noticiário na área, a sensação deve ter sido de mais do mesmo: desastres naturais, mudanças climáticas, desmatamento, perda de biodiversidade e uma série de debates e disputas em torno desses temas.

A área ganhou especial atenção da sociedade brasileira com a realização da Rio+20, em junho, no Rio de Janeiro. Mas o desfecho da conferência não fez jus à atenção recebida. Os governos não assumiram compromissos concretos para atingir as metas de desenvolvimento sustentável e ficaram de fora do documento final alguns pontos essenciais, como a criação de um fundo global para gerir danos causados por eventos climáticos.

Rio+20
No documento final da Rio+20, os governos não assumiram compromissos concretos para tentar atingir os objetivos relativos ao desenvolvimento sustentável. (foto: Henrique Kugler)

Na contramão dos (tímidos) esforços para ‘salvar o planeta’, o Brasil – que segue com níveis altos de desmatamento, com planos para construir usinas hidrelétricas na Amazônia e é líder mundial no consumo de agrotóxicoaprovou, após 13 anos de tramitação, o novo Código Florestal do país, com pontos que preocupam especialistas da área ambiental.

Para as ciências humanas, o ano foi um prato cheio, com acontecimentos de toda sorte que certamente deixarão suas marcas na sociedade: reeleição de Obama nos Estados Unidos, violência no Oriente Médio, julgamentos políticos no Brasil, a luta dos índios guaranis-kaiowás no Mato Grosso do Sul, só para citar alguns.

Na política científica nacional, a consolidação do Ciência sem Fronteiras (CsF) merece registro

Na política científica nacional, a consolidação do Ciência sem Fronteiras (CsF) merece registro. O programa do governo federal de formação de recursos humanos, que tem a meta ambiciosa de financiar o estudo de 100 mil brasileiros no exterior até 2015, vai fechar seu primeiro ano com 20 mil alunos enviados para universidades de 30 países. O CsF ganhou destaque no exterior e foi tema de editorial na Science, mas gestores, docentes e discentes brasileiros apontam críticas e desafios ao programa. Quem acompanha a cobertura na área vai certamente ouvir mais sobre o tema em 2013.

No ano que vem também deve haver novas definições sobre a entrada oficial do Brasil como membro do Observatório Europeu do Sul (ESO) e do Cern. Boa parte da comunidade científica considera a inserção brasileira nessas instituições um passo importante para a internacionalização da ciência nacional, mas há quem ache que o alto investimento por trás dela não vale.

CH e a divulgação científica

2012 também foi repleto de iniciativas, discussões e marcos na divulgação da ciência. Não poderíamos deixar de lembrar que foi neste ano que o projeto Ciência Hoje chegou à marca dos 30 anos, renovando o seu compromisso com a disseminação do conhecimento científico para os mais diversos públicos. A data foi comemorada com uma série de atividades.

Exposição CH 30 anos
Os 30 anos da Ciência Hoje foram comemorados com uma série de atividades, dentre elas uma exposição sobre a história da ciência e da revista e um documentário sobre a trajetória do projeto, que começou em 1982 com uma única publicação e hoje responde por diversas iniciativas de educação e divulgação científica. (foto: Henrique Kugler)

Reforçando a relevância que o ICH confere aos temas culturais e às reflexões que permeiam as ciências humanas e sociais, abrimos um novo espaço para a divulgação e discussão desses assuntos no nosso site, na seção ‘sobreCultura+’. A versão virtual do suplemento cultural da Ciência Hoje, com conteúdo exclusivo, inaugurou com a cobertura da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em julho. Desde então, tem se voltado a temas literários e artísticos.

Acompanhando o uso crescente de vídeos na comunicação da ciência, lançamos em agosto a série de vídeos para internet ‘CHats de ciência’, que busca apresentar de forma simples, curta e dinâmica temas atuais e instigantes do mundo científico, como a relação entre biologia e comportamento, a polêmica do aquecimento global e as potencialidades das células-tronco.

Retrospectiva 2012

Para fechar o ano, preparamos uma série de textos que irão resgatar esses e outros acontecimentos importantes que marcaram a ciência e o campo que se dedica à sua disseminação. Publicaremos, a partir de hoje, um total de oito matérias retrospectivas. As primeiras cinco contemplarão fatos e feitos de destaque em diferentes áreas da ciência, particularmente na física, astronomia, biologia, meio ambiente e humanidades.

Preparamos uma série de textos que irão resgatar esses e outros acontecimentos importantes que marcaram a ciência e o campo que se dedica à sua disseminação

A sexta irá traçar um panorama cultural – necessariamente fragmentado – com base em eventos, debates e novidades do setor que fizeram parte da cobertura oferecida pelo ‘sobreCultura’ ao longo do ano. A seguinte vai relembrar as comemorações em torno dos 30 anos da Ciência Hoje e diversas iniciativas de divulgação científica desenvolvidas em 2012.

O último texto será construído a partir das sugestões de leitores, coletadas no nosso Facebook, sobre aquilo que, em sua opinião, de mais importante aconteceu em 2012 no mundo da ciência. É uma forma singela de registrar a interação crescente que a CH On-line propõe a seu público.

Obviamente o resgate a que nos propusemos não é exaustivo. O que apresentaremos na nossa retrospectiva de 2012 é um recorte muito particular de um universo em expansão acelerada, em que acontecimentos grandes e importantes ocorrem e são noticiados quase diariamente. Com o crescimento cada vez mais veloz do empreendimento científico, a tendência é que isso se intensifique, lançando-nos um desafio cada vez mais complexo a cada fim de ano.

Carla Almeida
Ciência Hoje On-line