Reflexo da sociedade

O que os escritores Machado de Assis (1839-1908) e Guimarães Rosa (1908-1967) têm em comum? Entre uma diversidade de respostas possíveis, há um objeto importante em suas obras, que dificilmente alguém citaria: o espelho.

O artefato, que fascina a humanidade por diferentes motivos desde a Antiguidade, é peça central em contos homônimos de ambos os autores. Além disso, tem uma relação estreita com a literatura de modo geral – tanto o espelho quanto o texto literário podem ser entendidos como uma representação da realidade, ainda que como uma cópia artificial.

É disso que trata a dissertação de mestrado em letras de Thiago Figueredo, ‘A mímesis através dos espelhos de Machado de Assis e de Guimarães Rosa’, defendida na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Mímesis, ou mimese, pode ser traduzida, grosso modo, como a recriação da realidade em uma obra literária. Figueredo analisou a representação do objeto pelos dois autores para entender de que forma eles abordavam a realidade de suas épocas.

Tanto o espelho quanto o texto literário podem ser entendidos como uma representação da realidade

Em 1882, no livro Papéis avulsos, Machado de Assis descreveu, no conto ‘O espelho’, uma sociedade fluminense, em momento próximo ao da Independência, em que valores de países como Inglaterra e França eram adotados sem qualquer tipo de filtro, como se funcionassem da mesma forma no Brasil.

“A vestimenta da época, por exemplo, era inviável para o Rio de Janeiro por causa do calor, mas, naquele contexto, parecer era melhor do que ser”, diz Figueredo. Jacobina, o protagonista, não é capaz de enxergar o próprio reflexo no espelho quando tira a farda de alferes. “A analogia é com o olhar social: a indumentária era mais importante do que o indivíduo.”

Oitenta anos depois, foi a vez de Guimarães Rosa publicar, no livro Primeiras estórias, um conto homônimo. Rosa parte justamente da representação de Machado de Assis para abordar o espelho e faz referências diretas ao texto machadiano. A diferença é que o escritor mineiro avança na análise da sociedade de sua época ao problematizar também o diálogo interior do personagem principal (narrador), não apenas a realidade histórica.

“Ao procurar quem é, independentemente do resto do mundo, o protagonista não existe mais”, diz Figueredo. Mas, diferentemente de Jacobina, o personagem não se apega à materialidade, questionando a natureza do espelho e da própria alma.

Machado de Assis e Guimarães Rosa
Machado de Assis e Guimarães Rosa. Contos homônimos dos autores brasileiros foram tema da dissertação de mestrado de pesquisador da UFPE. (fotos: ABL/ Reprodução Editora Nova Fronteira)

Para o pesquisador da UFPE, os contos são como que teorizações da obra dos dois escritores, e, a partir deles, seria possível entender o estilo de cada autor. Figueredo considera que ‘O espelho’ de Guimarães Rosa é, de certo modo, complementar a ‘O espelho’ de Machado de Assis.

A conclusão vai ao encontro das ideias do filólogo alemão Erich Auerbach (1892-1957), que dizia que todos os textos, desde os primórdios da literatura, são complementares. “O conceito de mímesis de Auerbach é o de que um texto sempre dialoga com outro e também com questões sociais de sua época”, diz Figueredo. “A ligação entre evento antecedente e consequente se realiza por uma relação de similaridade.”

A partir da análise dos dois contos e de pressupostos de diferentes teóricos – de Platão até o teórico da literatura brasileiro Luiz Costa Lima –, o pesquisador conclui que “há diferentes formas de ‘ser’, e a confecção dessas formas resulta da interpretação das variações captadas na corrente dinâmica da história”.

O espelho na história

Antes de chegar aos contos dos escritores brasileiros, Figueredo analisou como o significado do espelho se modificou ao longo da história da literatura. “Busquei a relação entre arte, sociedade e história, de modo a entender a aproximação das obras com o respectivo momento histórico-social.”

Se hoje o objeto espelho está associado à vaidade, na Antiguidade seu sentido era oposto. “Sócrates dizia que olhar o próprio reflexo servia para a correção moral”, explica. “O feio deveria mirar o espelho para elevar-se moralmente, compensando sua feiura.” Narciso teria sido condenado justamente por se apegar à vaidade em detrimento de sua virtude. Em outras palavras, por distanciar-se do conhecimento da verdade em favor do enclausuramento na aparência.

'Narciso', de Caravaggio
‘Narciso’, óleo sobre tela de Caravaggio. O personagem da mitologia grega, que se apaixonou pela própria imagem, deu origem ao conceito psicanalítico de narcisismo desenvolvido por Sigmund Freud (1856-1939). (foto: The Yorck Project)

Na Idade Média, o espelho era o objeto que, de forma indireta, permitia chegar a Deus. A materialidade do objeto especular, de ordem direta, começa a mudar com William Shakespeare (1564-1616) e Luís de Camões (1524-1580). “Apesar disso, outros tipos de representação se mantêm.”

Para Figueredo, as mudanças na representação do espelho na literatura apontam que a realidade não é algo dominável. “O controle do imaginário de cada época exige um tipo específico de representação. Cada momento histórico concebe a realidade de uma forma, e é esse momento histórico que é representado pela literatura.”

Célio Yano
Ciência Hoje On-line/ PR