Repórteres sob análise

Pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), coordenados pela nutricionista Beatriz Serpa, pretendem comparar a saúde vascular de vegetarianos (que não comem nenhum tipo de carne), veganos (que não comem alimento algum de origem animal) e onívoros (a maior parte da população mundial, que come de tudo). Dois repórteres da Ciência Hoje, que adotam uma dieta vegetariana há anos, participam do estudo clínico de forma voluntária.

Os pesquisadores ainda estão recrutando pessoas que queiram participar. Basta ter mais de 18 anos e ser vegano ou vegetariano há no mínimo dois anos. Quem quiser doar seu sangue em nome da ciência deve entrar em contato com a coordenadora do estudo pelo e-mail [email protected] para agendar seu exame no Instituto Nacional de Cardiologia (INC), em Laranjeiras, no Rio de Janeiro (RJ). Os resultados ficam disponíveis para os voluntários, que ainda recebem um lanchinho – vegano, é claro – depois de tirar sangue. 

 

O dia em que dei meu sangue à ciência

Por Sofia Moutinho

Toda semana escrevo sobre estudos científicos com grupos de voluntários. Indivíduos anônimos que prestam seu tempo e, muitas vezes, seus fluidos corporais, para o bem da ciência (e da humanidade). Foi por meio de um post no Facebook que tive a oportunidade de sair do lugar de mera repórter dessas pesquisas e vivenciar a experiência de compor um ‘n’ – grupo amostral, no jargão científico.

“Precisa-se de vegetarianos e veganos do Rio de Janeiro para pesquisa de nutrição da Fiocruz!”, convocava a mensagem. Não como carne de nenhum tipo há 14 anos e logo me animei com a possibilidade de participar do estudo. Afinal, o rato da vez seria eu e não um bichinho de laboratório sem escolha. Para me fazer companhia, chamei meu colega de redação, Henrique Kugler, também vegetariano.

Como voluntários, tivemos que fazer um exame de sangue – retiramos mais precisamente 10 tubinhos de cerca de 10 ml cada. A coleta foi feita com muita delicadeza ao ponto de não sentir a agulha dentro da minha veia.

Os exames de sangue dos vegetarianos costumam ser ótimos, com colesterol e triglicerídeos baixos. Os únicos problemas são a falta de vitamina B12 e o excesso de homocisteína

Beatriz Serpa, que coordena o estudo como parte do seu mestrado na Fiocruz, comentou que os exames de sangue dos vegetarianos costumam ser ótimos, com colesterol e triglicerídeos baixos. Os únicos problemas, segundo ela, são a falta de vitamina B12, encontrada em produtos de origem animal, e o excesso de homocisteína, fator de risco para doenças cardiovasculares.

“Em níveis elevados, a susbtância pode destruir a camada responsável pelo revestimento interno dos vasos conhecida como endotélio, responsável pela liberação de várias moléculas essenciais ao bom funcionamento do sistema circulatório”, explica a nutricionista. “Lesões nessa camada reduzem a capacidade de dilatação do vaso e, quando presentes cronicamente, contribuem para um processo inflamatório. Assim, seja por uma menor capacidade de dilatação ou pelo acúmulo de gordura na parede dos vasos lesionados, o fluxo sanguíneo é reduzido, propiciando a ruptura do vaso ou a isquemia – falta de sangue em algum tecido do corpo.” 

Segundo Serpa, acredita-se que os níveis de homocisteína aumentem quando o corpo passa a produzir creatina em excesso. A creatina é uma proteína conhecida entre atletas e ratos de academia que tomam suplementos da substância para ficar com o corpo ‘bombado’. Ela pode ser obtida de alimentos de origem animal, mas também é produzida pelo próprio organismo – praticamente meio a meio. Vegetarianos, então, deveriam ter pouca creatina, certo?

Capilares
Os voluntários passam por três exames, entre eles um para visualizar os vasos sanguíneos do dedo. (foto: Henrique Kugler)

Acontece que, por não receber a quantidade adequada de creatina dos alimentos, o corpo dos vegetarianos produz a substância em excesso para compensar essa carência. “Essa produção desenfreada gera o aumento da homocisteína, que prejudica os vasos sanguíneos”, explicou a nutricionista.

Por isso, o estudo da Fiocruz pretende avaliar os níveis de homocisteína dos voluntários. A proporção adequada é de cerca de 5 micromol da substância por litro de sangue. Segundo Serpa, veganos e vegetarinos costumam apresentar o dobro desse valor. 

Como os pesquisadores querem analisar ainda a saúde do endotélio e a vascularização dos voluntários, nos submetemos também a um teste simples, que consiste na visualização ao microscópio dos capilares de um dedo. Fizemos ainda o exame de microcirculação cutânea, que permite ver se o endotélio dilata normalmente quando estimulado. Sem dor. Apenas uma coceirinha na pele no segundo procedimento.

Em uma segunda fase, os pesquisadores pretendem analisar a reposta dos voluntários a uma suplementação de creatina

Em uma segunda fase, os pesquisadores pretendem analisar a reposta dos voluntários a uma suplementação de creatina (sintética, não de origem animal). Eles acreditam que, ao ingerir creatina, os vegetarianos e veganos possam normalizar os níveis de produção da substância. 

“No Brasil, temos poucos estudos sobre a nutrição e a saúde de grupos com restrições alimentares específicas”, observou Serpa. “Quem sabe com essa pesquisa não consigamos mostrar que é possível manter a saúde com dieta vegetariana e suplementos? Pode ser até que mais pessoas se animem a se tornar vegetarianas”, sugeriu a nutricionista, que é onívora.

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Cobaias na redação

Por Henrique Kugler

Eis que recebi o curioso convite de minha colega de redação na Ciência Hoje, Sofia Moutinho, para participar da pesquisa da Fiocruz. Afinal, também sou vegetariano de longa data. Tudo bem que a ideia de ser cobaia não costuma ser exatamente atrativa – mas, pelo bem da ciência, a dupla julgou que fazer parte do estudo poderia ser uma experiência bacana.

E lá fomos nós, na manhã da última sexta-feira, ao Instituto Nacional de Cardiologia, no Rio. A primeira etapa do estudo baseou-se em três testes bastante simples: coleta de sangue (nenhum segredo); capilaroscopia (para contagem de capilares dos dedos da mão); e exame de microcirculação cutânea (para verificar a vasodilatação no antebraço).

Braço
No exame de microcirculação cutânea, os pesquisadores observam a dilatação da parede interna dos vasos sanguíneos quando estimulados. (foto: Sofia Moutinho)

Nosso maior desafio, na verdade, não foi fazer os exames. E sim enfrentar o jejum – necessário nas 12 horas que antecedem a coleta de sangue. Mas que isso não desanime os próximos voluntários. Aliás, os nutricionistas responsáveis pela pesquisa ainda precisam de mais participantes para concluir o estudo. 

Nenhum dos testes causa dor ou qualquer tipo de desconforto. Tudo o que o voluntário precisa fazer é marcar um horário; ficar em jejum; e abster-se de café e álcool por algumas horas. Aliás, no caso dos jornalistas da Ciência Hoje isso não foi problema. Pois, além de vegetarianos, não consumimos bebidas alcoólicas. Somos, sabidamente, os repórteres mais caretas da redação.

 

Sofia Moutinho e Henrique Kugler
Ciência Hoje On-line/ RJ