Rituais de tribos urbanas

Apesar da divergência de opiniões suscitada pelas raves, é inegável que esses eventos são muito mais do que simples festas. E isso não se deve apenas à magnitude das celebrações, que reúnem multidões e podem durar dias seguidos. Em sua tese de doutorado, a antropóloga Carolina Abreu explora o caráter ritualístico das raves e expõe elementos que podem caracterizá-las como encontros de uma ‘tribo global’.

O trabalho, desenvolvido na Universidade de São Paulo (USP) e escrito na forma de ensaio, foi embasado em 15 anos de observações de Abreu e relatos de frequentadores sobre suas experiências pessoais colhidos em raves no Brasil, Inglaterra e Alemanha.

A antropóloga já havia estudado essas festas em seu mestrado. “Na ocasião, eu fiz uma etnografia clássica”, afirma. “Esse trabalho foi importante para desenvolver as questões do doutorado, que acredito serem mais maduras”, completa.

Veja vídeo em que a antropóloga fala sobre seu trabalho acerca das raves

As raves são ‘baladas’ realizadas em locais isolados dos centros urbanos, como sítios, praias ou galpões, e se estendem por muitas horas, às vezes dias. A atmosfera mistura música eletrônica e jogos de luz, além de pinturas corporais e acessórios variados utilizados pelos frequentadores. O uso de substâncias psicotrópicas, como o ecstasy, também é comum, embora, segundo Abreu, haja grupos de pessoas que optem por não se drogar.

Resgate do convívio comunitário

Mas o que a rave tem de diferente, em relação a outras festas, que é capaz de provocar experiências – positivas ou negativas – mais profundas e marcantes? De acordo com Abreu, é a busca por experiências que se aproximam do tribal que torna esses eventos singulares. O conjunto dos elementos audiovisuais contribui para criar uma atmosfera que mistura hiperestímulo e misticismo, o que reforça a ideia de ‘tribo global’, comum a todas as raves.

Por esse motivo, segundo Abreu, a partir do início dos anos 2000 cresceu muito a participação de indígenas nesses eventos no Brasil. Essas pessoas podem realizar danças características de seu povo, falar algumas palavras supostamente sábias ou simplesmente estar presentes, observando, interagindo e, eventualmente, vendendo produtos artesanais ou pinturas corporais.

Rave
Segundo antropóloga, é a busca por experiências que se aproximam do tribal que torna as ‘raves’ eventos singulares. O conjunto dos elementos audiovisuais contribui para criar uma atmosfera que mistura hiperestímulo e misticismo, o que reforça a ideia de ‘tribo global’. (foto: Marília Almeida/ Flickr – CC BY 2.0)

“As raves estão ligadas a uma busca comum ao longo da história por um convívio comunitário que teria se perdido há muito tempo”, afirma a antropóloga. Nesse contexto, a presença dos índios reforçaria alguns dos conceitos que a civilização ocidental tem a respeito de sua suposta origem tribal.

“É uma ideia romântica, do ‘bom selvagem’, que está sendo articulada; um índio conectado com a natureza, com o cosmo e as esferas espirituais da vida”, completa.

Transformações pessoais

O outro ponto observado na pesquisa está relacionado às consequências das raves para seus frequentadores, que vão além do potencial divertimento. “Por ser um evento frequentado em sua grande maioria por pessoas entre 20 e 30 anos, a rave é parte importante do amadurecimento de muita gente”, afirma a antropóloga.

Segundo Abreu, é comum que esses jovens morem com os pais e estejam começando a carreira profissional ou ainda estagiem, tendo que arcar com apenas parte das responsabilidades da vida adulta. “Acaba sendo um período em que a pessoa está sendo introduzida às estruturas da sociedade durante a semana, mas, ao mesmo tempo, tem experiências muito antiestruturais ao frequentar as raves.”

Para a antropóloga, existe a possibilidade de a festa ser uma experiência de catarse, com efeitos de válvula de escape, acalmando os anseios do dia a dia

Para ela, existe a possibilidade de a festa ser uma experiência de catarse, com efeitos de válvula de escape, acalmando os anseios do dia a dia. Segundo a pesquisadora, o mais significativo, porém, são as alterações de perspectivas pessoais deixadas pelas raves nos jovens.

“Uma moça que entrevistei me disse que, depois de conhecer as raves, resolveu pegar um dinheiro que tinha guardado para fazer um curso de pós-graduação e usá-lo para viajar pelo mundo”, exemplifica. “Outra pessoa afirmou ter aprendido a amar nessas festas”, completa.

Uma questão importante envolve a responsabilidade pela própria vida. De acordo com Abreu, o maior medo dos jovens que vão às raves é a necessidade de serem submetidos a um tratamento psiquiátrico, por conta do uso de drogas.

A pesquisadora ressalta que, embora o consumo de substâncias psicotrópicas não tenha sido o foco do seu estudo, ela não poderia ignorar a prática, que faz parte da produção da festa.

“Não presenciei problemas graves durante minha participação nas raves, porém, conversas e observações sugerem que muitos frequentadores fazem uso de psicoativos e sabem reconhecer os inúmeros riscos de seu consumo”, conclui.


Yuri Hutflesz
Ciência Hoje On-line