Sem passado, sem futuro

São 2 milhões de itens, impressos nos mais variados suportes. Fotos, pôsteres, cartas. Em película, são 7 mil filmes; em fitas analógicas, 55 mil. Estamos na ala do Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro destinada a conservar a memória do cinema; sobretudo, do cinema nacional. O guia: Hernani Heffner, diretor de conservação da Cinemateca do MAM.

Heffner anda pelos corredores do local com propriedade; são mais de 15 anos no cargo. Parece saber onde está qualquer objeto. É interrompido diversas vezes por ex-alunos, funcionários, amigos. As demandas são as mais variadas: “Pode liberar a entrada para a exposição do Giacometti?”; “Queria dar um passeio pelo acervo com um amigo.”; “Você conhece este filme?”; “Onde está Limite?”. Ele atende a todos com fala mansa e inveterado bom humor.

Além de conservador, Heffner é restaurador de filmes. Dá aula em cursos livres em todo o Brasil e, também, no curso de cinema da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. É considerado referência tanto no meio de conservação de filmes quanto no de crítica e ensino de cinema. “O que eu gosto mesmo é dessas máquinas velhas”, brinca, apontando para câmeras, projetores e mesas de montagem do século passado que esperam por restauração nos corredores da cinemateca.

Artigo aponta saídas para dilema recente da cinematografia brasileira: que histórias contar diante de uma nova realidade social e econômica do país?

No entanto, a predileção por “ferros-velhos” não o impede de escrever, de tempos em tempos, textos fundamentais para o entendimento do cinema brasileiro. O texto-diagnóstico da vez foi publicado na Cinética, respeitada revista eletrônica sobre cinema.

Originalmente escrito para uma mostra de filmes brasileiros na Holanda, o artigo aponta saídas para dilema recente da cinematografia brasileira: que histórias contar diante de uma nova realidade social e econômica do país?

Heffner defende que, direta ou indiretamente, a preocupação com a identidade do país sempre foi o tema central dos filmes brasileiros. Pela descrença ou esperança, havia o imperativo de uma análise crítica do Brasil: Humberto Mauro e a sua representação de um país “oligárquico e agrário, elogiado em sua aparente candura”; as chanchadas com desenhos de uma “paisagem urbano-industrial” nacional; o Cinema Novo e o seu esforço para encontrar um “projeto fundador de um Brasil moderno”.

Hoje, a eterna promessa de país teria finalmente ascendido à condição de potência. A consequência para o cinema nacional, segundo Heffner, é o esvaziamento de significado de qualquer obra que tente propor um acerto de contas com o Estado. “Bem ou mal, finalmente chegamos ao momento em que nossos paradigmas de desejos dentro de uma sociedade industrial foram alcançados, podemos comprar, podemos ter; agora o novo questionamento é: isso é tudo, é só isso?”

Com o intuito de dilatar as ideias do artigo publicado na Cinética, o sobreCultura foi até o MAM conversar com Heffner. Entre tantos assuntos, ele discorreu mais detidamente sobre o cinema atual e sobre como lidar com os dilemas de um Brasil transformado.

Hernani Heffner
Hernani Heffner, ao centro, posa com a diretoria recém-eleita da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual, da qual agora é presidente. (foto: Universo Produção/ Flickr – CC BY-NC-ND 2.0)

sobreCultura: No artigo publicado na Cinética, você fala de um novo momento social e econômico do pais. Esse momento apresentaria novas questões para as pessoas e para o cinema. Que questões são essas?
Hernani Heffner: A certa altura, a noção de felicidade passou a ser traduzida pela ideia de fartura, beleza, riqueza. O Brasil, que surgiu como nação no século 19, colocou num horizonte muito difuso a esperança de que talvez o país viesse a proporcionar essa felicidade.

As pessoas desconfiavam muito desse projeto. O Brasil seria sempre o país do futuro. A surpresa veio quando, um século e pouco depois, o Brasil virou o país do presente. Um presente avassalador, com o sexto maior PIB do planeta, deixando para trás as Noruegas e Suécias da vida.

Se quero comprar, vou comprar; se quero viajar, vou viajar; se quero ter, vou ter. De certo modo, o país realizou esses sonhos. A questão hoje em dia é se essa realização é um valor em si mesmo e se esse valor é adequado.

Então, a essa altura, quando você descobre que o Brasil se transformou num país semelhante àqueles que eram o paradigma, o que fazer? Isso redime? Isso traz a felicidade plena?

De alguma maneira o país caminhou para isso, conquistou isso, e certa parcela das pessoas pergunta: “É só isso? Isso não é um equívoco?”.

Existe alguma unidade de discurso entre os cineastas, alguma tentativa como as do passado de propor mudanças no país?
Não há por quê. Não há mais um país para se construir, o futuro chegou. O presente está posto. Vencemos, prosperamos. O cineasta não alcança mais a nação, a esquerda, a direita. Não dialoga com outros cineastas. Não busca a solução no passado nem vislumbra o futuro.

E o que falar, como se comunicar?
O cineasta atual se comunica com um público indistinto, que não espera proposições. Ele se comunica por meio de uma perspectiva unicamente pessoal.

As questões pessoais atuais – e os filmes brasileiros refletem isso – passam, por um lado, pelo prazer, pela realização da plenitude por meio de drogas, viagens de cruzeiro, um grande amor etc.

Por outro lado, passam também pelo enfrentamento da existência, da consciência de que se é finito, de que, mesmo que você viva uma vida de prazer, um dia a vida vai acabar. E aqui as coisas se dividem ainda mais.

Como?
Uma parte da população reage ao medo do fim indo buscar o substituto clássico: a religião. O cinema reconhece a demanda e, por isso, há um conjunto de filmes espiritualistas no Brasil. O público é imenso. Nosso lar faz 4 milhões de espectadores, Chico Xavier faz 3 milhões de espectadores.

Do outro lado, há filmes como Girimunho [no trailer abaixo] , em que a personagem, já velha e após perder o marido, encara a existência e diz: “Estou viva, isso me basta, faço da minha vida o que quiser enquanto ela durar, quando ela acabar, acabou”. Não tem mistério, não há solução mágica. Não há ilusão. Enfrenta-se o presente. Esses são os filmes de que mais gosto.

Por quê?
Porque esse é o novo paradigma: o Brasil agora é o país do presente e é preciso lidar com esse presente. Viver no presente. Os personagens dos filmes mais legais feitos hoje em dia no país aprendem, mesmo que com sofrimento, que é preciso viver no presente, deixar o velho Brasil, o velho amor, a velha vida para trás e seguir em frente.

Se buscamos solução no passado ou no futuro, as questões se tornam menos desafiadoras, menos corajosas. O nosso passado já está feito, é só recuperar, ir buscar lá atrás as nossas qualidades. O nosso futuro precisa ser construído, mas, uma vez construída essa ideia de futuro, basta não mexer nela. O presente é sempre indefinível.

E quais são os filmes corajosos feitos hoje, os filmes de que você gosta?
Eu adoro Girimunho [risos].

Algum outro?
O céu de Suely, Estrada para Ythaca…Tem poucos, não são muitos não [risos]. Girimunho é sem dúvida um filme-chave. Aí é que está o desafio: fazer filmes que dialoguem de forma corajosa com o presente.

Como você enxerga neste novo cenário do ‘Brasil do presente’ a febre de filmes considerados mais próximos de uma linguagem televisiva ou, mesmo, de uma despretensão estética?
Você se refere a esses blockbusters da Globo Filmes’, né? São filmes para a classe média, é um cinema atual, deste Brasil rico. Mas é também um cinema que faz uma constatação maior: a mulher venceu. Então, se o Se eu fosse você ainda é cuidadoso, o De pernas para o ar, o Cilada.com e, sobretudo, o E aí, comeu? radicalizam: são os homens se lamentando o tempo todo. “Poxa, elas deixaram a gente para trás, ocuparam tudo, são donas de tudo… E agora, o que a gente tem? Não tem nem mesmo o amor delas?”

Não deixa de ser um cinema que trata do presente…
Sim, só do presente. É um cinema que fala desse Brasil mais rico, fala da classe média alta, da mudança de estrutura social brasileira, é um cinema da vitória feminina ao longo da história, é um cinema que se pretende urbano. Sem grandes pretensões estéticas, é verdade, sem muitas elaborações. O grande pecado desses filmes não é o fato de serem voltados para o mercado, mas sim o fato de não elaborarem as suas questões.

Hernani Heffner descreve, plano a plano, a cena final de O céu de Suely. Confira o áudio:

 

Abaixo, a cena descrita por Heffner:

Thiago Camelo
Ciência Hoje On-line