Talento calado, introspectivo

Ele não é exatamente um artista esquecido. Mas, sem dúvida, sua tímida fama não condiz com a relevância histórica e estilística de sua arte. Mozart Camargo Guarnieri (1907-1993) foi, provavelmente, o compositor que deu à música erudita de nossa terra uma das mais refinadas expressões de brasilidade.

Gravações de sua obra, porém, não são numerosas. Do vasto repertório assinado por Guarnieri – mais de 700 trabalhos –, há muito ainda por ser gravado. Boa parte de suas peças, hoje, vive somente nas partituras, ou, para ouvintes afortunados, em eventuais recitais ou concertos.

A indústria fonográfica brasileira mostra-se sonolenta para o resgate pleno desse legado

A indústria fonográfica brasileira mostra-se sonolenta para o resgate pleno desse legado. Boa nova, entretanto, é que a gigante da música erudita Naxos lançará, em 2013, um novíssimo CD duplo com parte substantiva do repertório pianístico de Guarnieri: ‘Dança negra’, ‘Dança selvagem’, ‘Dança brasileira’, ‘Sonata para piano’, ‘Suíte mirim’ e os 50 ponteios. “O trabalho está em fase final de mixagem, e deve sair em janeiro do próximo ano”, adianta o musicólogo James Melo, estudioso do legado do compositor e editor da Répertoire International de Littérature Musicale (Rilm), sediada na Universidade da Cidade de Nova Iorque.

Melo celebra a ideia de que, em breve, “um público internacional amplo terá oportunidade de descobrir essas joias musicais repletas de inspiração, variedade de expressão e riqueza técnica e formal”.

Profundamente terno, como o coração da noite*

A interpretação das peças recém-gravadas fica por conta de Max Barros, pianista brasileiro nascido na Califórnia que vem cumprindo importante papel na projeção da obra de Guarnieri no cenário internacional. Em 2005, ele gravou, também pela Naxos, os ‘Concertos para piano’ números 1, 2 e 3; e, em 2010, deu sequência ao projeto lançando os ‘Concertos para piano’ 4, 5 e 6. Esse último, aliás, era à época nada menos que uma world première recording, isto é, uma obra nunca dantes gravada.

“Esses concertos tiveram uma recepção muito positiva por parte da crítica internacional”, analisa Melo, e as gravações impulsionaram uma espécie de renascimento da música de Guarnieri tanto no Brasil quanto no exterior.

Por aqui, destacou-se em 2009 o elegante projeto ‘Camargo Guarnieri: 3 concertos para violino e a missão’, capitaneado pelo Centro Cultural São Paulo – com direito a gravações inéditas, resgate de documentos históricos, produção de documentário e até edição de partituras. Foi uma das mais expressivas iniciativas nacionais de valoração da obra do compositor.

Ouça execução do ‘Choro para violino e orquestra’de Mozart Camargo Guarnieri

Já em 2010, foi a vez da pianista Rosângela Sebba, que, com apoio do Instituto Casa Brasil de Cultura, lançou um álbum com repertório também inédito nos registros em áudio. E, em 2011, a gravadora Biscoito Fino lançou as Sonatas para violino e piano – a mesma gravadora lançara, há alguns anos, as seis sinfonias de Guarnieri.

Esse florescer musical, ao que tudo indica, segue ritmado e num aparente crescendo. Além do CD esperado para janeiro, também está no cronograma da Naxos a gravação de novos álbuns dedicados ao compositor. “Estamos preparando mais cinco CDs contemplando o restante das obras para piano solo e as obras de câmara com piano”, diz Melo, entusiasmado com o ímpeto de reconhecimento e admiração internacional que vem conquistando esse notável artista brasileiro.

Calmo, com profunda saudade*

Quando o assunto é música brasileira do século 20, comparações entre Guarnieri e Heitor Villa-Lobos (1887-1959) são inevitáveis. “E esse é um tema que divide opiniões”, comenta Melo. Segundo o musicólogo, há quem considere, do ponto de vista técnico, que Guarnieri tenha sido um compositor muito mais sofisticado. Ao contrário de seu contemporâneo, ele raramente citava temas tradicionais de maneira clara e direta – mas sugeria, em melodias, timbres e ritmos, uma brasilidade sutil inserida no requinte de uma técnica de composição de primeira ordem.

Não por acaso, o compositor norte-americano Aaron Copland (1900-1990), após suas andanças por terras austrais, referiu-se a Guarnieri como “o mais excitante talento entre os compositores latino-americanos”.

Ouça ‘Ponteio nº 38’, de Mozart Camargo Guarnieri

Mas é Villa-Lobos o que desfruta de incomparável fama – não só no Brasil como também no exterior. Embora inegáveis os méritos de sua obra, é possível que caminhos se tenham aberto em função da personalidade arrojada do compositor. “Carismático, ele era do tipo que monopolizava qualquer conversa onde quer que estivesse”, diz Melo. Além disso, deleitava-se em seu “afinadíssimo senso de oportunidade”, lembra o maestro Arthur Nestrovski, da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, em artigo na Folha de S. Paulo. Enquanto Guarnieri, de certa forma, era um tanto mais reservado, retraído, acanhado. Perfeitamente possível imaginar, pois, que o refinado estilo de um tenha sido, talvez, eclipsado pela personalidade efusiva de outro.

“Triste, estranha sina de Camargo Guarnieri”, comenta Nestrovski. “Nas décadas que deveriam ser suas, caiu da escada da história.” Mas hoje revive. E, segundo Melo, ocupa lado a lado com Villa-Lobos o mais alto ponto da música brasileira do século que se passou.

Henrique Kugler
Ciência Hoje/RJ

* “Profundamente terno”, “Como o coração da noite” e “Calmo, com profunda saudade” são expressões que Guarnieri utilizou para nomear andamentos em suas composições.

Este texto foi atualizado para incluir a seguinte alteração:
Em vez de nos referirmos ao intérprete como “pianista californiano-abrasileirado”, passamos a citá-lo como “pianista brasileiro”. Embora nascido na Califórnia, Max Barros foi criado no Brasil e prefere ser identificado como brasileiro. (23/08/2012)