Tango e tragédia

Sua morte ainda é um enigma. Mas sua vida o consagrou como rei do tango brasileiro. Ernesto Nazareth (1863-1934) é um dos compositores mais representativos de nossa música, e em 2013 comemoramos os 150 anos de seu nascimento.

Nazareth foi o elo entre dois mundos distintos: o da tradição erudita e o da música popular.

Exímio pianista, teve sua formação guiada pelo estudo dos grandes mestres – Ludwig van Beethoven (1770-1827), Frédéric Chopin (1810-1849), Franz Liszt (1811-1886). Mas sua obra, na verdade, acabou espelhando o folclore, as canções de raiz e as danças do povo.

Apesar da técnica pianística embebida na finesse europeia, o compositor desenvolveu mesmo foram os gêneros populares. A música das ruas – polcas, tangos, maxixes e choros – encontraram no piano de Nazareth uma releitura sofisticada, gênese de uma brasilidade própria.

Barros: “Não gostava que sua música fosse dançada ou arranjada para vozes e instrumentos ditos ‘profanos’”

Curiosa ironia. Pois Nazareth, segundo alguns, renegava sua vocação popular. “Não gostava que sua música fosse dançada ou arranjada para vozes e instrumentos ditos ‘profanos’”, conta a pianista Eudóxia de Barros, uma das principais intérpretes do compositor. “Na essência, era um homem sensível, avesso a noitadas boêmias”, revela Barros.

Mas nem todos concordam. Segundo o biógrafo Luiz Antonio de Almeida, um dos maiores estudiosos da vida de Nazareth, não há relatos ou documentos que endossem essa interpretação. “Muitas obras de Nazareth tinham, de fato, um caráter mais introspectivo, e o compositor dizia que elas deveriam ser ouvidas com atenção e cuidado; mas, de acordo com minhas pesquisas, não consta que ele tenha sido arredio a arranjos ou ao caráter dançante de suas peças”, diz Almeida.

Ouça a pianista Eudóxia de Barros executando a peça Ouro sobre azul e explicando nuances do estilo de Nazareth

Nazareth digital

Ao todo, Nazareth nos legou 211 peças. E você com certeza já ouviu no mínimo duas delas – Odeon e Brejeiro, composições imortalizadas no repertório da música brasileira. Aliás, prepare seu fone de ouvido. Pois o sesquicentenário vem acompanhado de uma bela notícia: já está no ar o site Ernesto Nazareth 150 anos, resultado de exaustivo levantamento que reúne praticamente todo o legado do compositor em um só endereço.

Parece exagero, mas poucos compositores têm uma página na internet tão completa assim. Não são apenas informações biográficas. Além das 300 fotografias históricas, o internauta encontra também um inventário de toda a discografia nazarethiana. Acha pouco? Nada menos que 2.300 gravações estão disponíveis para audição no site! E, para os músicos de plantão, lá podem ser acessadas todas as partituras do compositor.

Partitura de 'Odeon', de Nazareth.
Partitura de ‘Odeon’, uma das peças mais famosas de Nazareth. ‘Grandes e belas melodias, expressividade psicológica e síncopes amaciadas que mais lembram tercinas.’ Assim a pianista Eudóxia de Barros refere-se à música de Nazareth.

É um primoroso trabalho de catalogação e pesquisa. Méritos ao maestro Paulo Aragão, ao pianista Alexandre Dias e a uma equipe de peso, que mantêm o site no ar com o apoio do Instituto Moreira Salles.

Enigma fúnebre

Pelas alamedas do sanatório, o compositor fugiria despercebido. Três dias depois, foi encontrado o cadáver. Laudo médico: “asfixia por submersão”. Acidente ou suicídio? A morte de Nazareth é um dos enigmas da história da música brasileira.

Laudo médico: “asfixia por submersão”. Acidente ou suicídio? A morte de Nazareth é um dos enigmas da história da música brasileira

Em 1932, o compositor foi diagnosticado com sífilis. Internaram-no em um centro médico no Rio de Janeiro (RJ). Melhorou e voltou para casa. Mas logo veio uma grave piora – sua surdez avançada, segundo alguns, já se somava a sinais de loucura. Passou o último ano de sua vida em um centro psiquiátrico, na Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá (RJ).

Primeiro de fevereiro, 1934. No dia do aniversário de um de seus filhos, Nazareth escapa dos olhares atentos dos vigilantes do sanatório e foge pelas imediações da colônia. Alerta geral. Todos se mobilizaram para localizar o foragido compositor. Havia nas redondezas uma pequena represa – encontrado o corpo em suas águas, as buscas se deram por encerradas.

Biografia engavetada

As editoras brasileiras talvez mereçam aquele puxão de orelha. Explica-se: a primeira biografia de Ernesto Nazareth – mais de 400 páginas sobre um dos mais celebrados compositores brasileiros – ainda está engavetada. Obsessivo pesquisador e especialista na história de Nazareth, o biógrafo Luiz Antonio de Almeida, do Museu da Imagem e do Som, dedica-se a esse trabalho há mais de três décadas. Ele teve o privilégio – e a sorte – de encontrar e entrevistar pessoas muito próximas ao compositor. Parentes, amigos e inclusive o enfermeiro que conviveu com ele em seus últimos anos. “Hoje, 37 anos depois e 30 quilos mais gordo, dou a pesquisa por encerrada”, brinca o autor, que é, hoje, provavelmente a maior autoridade no assunto. “Sem o trabalho de Almeida, não saberíamos hoje uma fração do que sabemos sobre Nazareth”, comenta o pianista Alexandre Dias. A história já está contada. Mas, para que se materialize a tão esperada publicação, aguardemos a iniciativa de alguma sensata casa editorial.

Henrique Kugler
Ciência Hoje/ RJ