Nicolau Maquiavel (1469-1527) só emprestou ao teatro uma parte mínima de seu tempo e talento; mesmo assim, sua importância na história do teatro italiano, e mesmo do universal, é muito grande. Sabem todos que a Itália – ou melhor, o que hoje conhecemos como Itália –, não se tornou, no final do século 15, diferentemente do que se deu com a Espanha, a Inglaterra e a França, uma monarquia nacional. Para o teatro, no entanto, foi significativo o fato de que não houvesse uma unificação de língua, o que, aliás, se reflete no valor que até hoje têm ali os dialetos.
Não podemos esquecer que as formas da dramaturgia clássica haviam desaparecido completamente com os vastos movimentos migratórios que invadiram e desagregaram o Império Romano. E, na Idade Média, a presença de Roma fizera com que a forma dramática não tivesse grande desenvolvimento na Itália. Nessa Itália esfacelada, de que Maquiavel fala em O príncipe, nasce no século 15 a commedia dell’arte, que podia ir a toda parte na península justamente por usar linguagem corporal e situações visualmente compreensíveis.
Apesar do excepcional exemplo de Dante Alighieri (1265-1321), que optou pelo toscano para sua poesia, a falta de um idioma nacional fez com que vários autores, das várias cortes ou repúblicas, tentassem fazer renascer a forma dramática, escrevendo em latim imitações de Plauto (254-184 a.C.) e Terêncio (195-159 a.C), das quais não resta nada que interesse.
Maquiavel, por sorte, tinha toda a sua atenção voltada para o seu tempo, muito embora se tenha a informação, dada por um neto seu, de que ele reuniu com o título Le Maschere um grupo de adaptações da forma de comédia de Aristófanes, infelizmente perdido.
Das três obras dramáticas que ainda restam de autoria de Maquiavel, a primeira, Andria, é apenas uma tradução de uma obra de Terêncio que tem o mérito de o ter familiarizado com a forma da comédia, tanto na estrutura da ação quanto na construção dos personagens. Ao escrever A mandrágora, sua obra-prima, por volta de 1520, ele fará uso de alguns dos tipos clássicos da dramaturgia romana, mas felizmente sempre em toscano, o futuro italiano.
A terceira e última obra dramática de Maquiavel, a Clizia, inspirada na Casina de Plauto, também tem o mérito de se voltar para a vida contemporânea, mas não alcança o mesmo nível da anterior.
Postura distante e amoral
Tanto na Mandrágora quanto na Clizia, Maquiavel trabalha com os cinco atos e as unidades de tempo, lugar e decoro clássicos da Antiguidade, mas o faz a partir de uma postura distante, amoral, para retratar os indivíduos e os hábitos da estrutura social de seu tempo. Sem dúvida, é divertida a crítica feita na Clizia ao ridículo do velho Nicômaco (típico senex da comédia romana), que, casado, se apaixona pela jovem e linda filha de criação, se tornando rival do próprio filho; mas a trama era de Plauto, e o que falta a essa comédia de Maquiavel é justamente a originalidade que tem a sua antecessora.
A mandrágora é um divertido e agudo retrato da corrupção de hábitos e costumes que Maquiavel via na Florença de seu tempo, e já tem sido notado que a comédia é escrita com a mesma prosa forte e precisa que o autor usou em O príncipe. A situação inicial da disputa sobre qual a mulher mais linda, a francesa ou a florentina, tem em Giovanni Boccaccio e nas muitas novelle ricas fontes de intriga, e em Terêncio tipos que ele aproveita para poder armar com precisão sua notável comédia.
O que distingue A mandrágora, no entanto, é justamente o fato de Maquiavel, em lugar de apenas copiar Terêncio, ter feito o indispensável para o sucesso das comédias mais famosas do Ocidente, da Grécia até hoje: ele olhou para a sociedade de seu tempo e para os descaminhos e vícios que lhe eram característicos. Aqui a maior diferença é que, em vez dos antigos criados espertos, os zanni da commedia dell’arte, são Calímaco, o antigo innamorato, e Ligúrio, o antigo perseguidor de refeições gratuitas, que armam toda a intriga.
Se Messer Nicia, o marido idiota, pode ser identificado com o conhecido Dottore, a figura de Frei Timóteo é totalmente nova, e sua corrupção é tão alvo da crítica da comédia quanto a importância do dinheiro, que afeta a praticamente todos.
A única figura que Maquiavel faz ter mais critério e noção do que seja ou não um comportamento correto é Lucrécia, em torno de quem gira toda a trama. Mas ela acaba aceitando de bom grado o amante que o marido, sem querer, juntamente com a mãe, por tolice, e o frade, por corrupção, lhe impõem. Esse final cínico, pragmático, é o que faz de A mandrágora uma comédia original, realmente nova para o seu tempo.
Desde a sua criação, A mandrágora não só foi bem-sucedida em Florença quando estreou, como logo foi montada em Roma e Veneza, e continua até hoje a ser periodicamente apresentada, mundo afora, com sucesso. No Brasil, já foi encenada várias vezes, mas nenhuma das posteriores conseguiu sequer aproximar-se da extraordinária montagem em 1962 pelo Teatro de Arena de São Paulo.
Barbara Heliodora
Ensaísta, tradutora e crítica de teatro