‘Todos morrem’

Rumores no Congresso Nacional e na mídia sugerem que, em agosto próximo, o Supremo Tribunal Federal (STF) irá decidir sobre a interrupção de parto em caso de fetos anencéfalos. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 54, petição que reivindica para a paciente a decisão de manter ou interromper a gravidez nessas condições, está para ser votada há sete anos.

Em conferência nessa terça-feira (12/7), na 63ª Reunião Anual da SBPC, em Goiânia, o médico, geneticista e professor da Universidade de São Paulo (USP) Thomaz Gollop, defensor fervoroso da causa, falou sobre a importância de a sociedade estar atenta e bem informada sobre o assunto.

Para Gollop, é fundamental que as pessoas saibam separar o joio do trigo. Para efeitos bioéticos e legais, ressaltou, a suspensão de partos no caso de fetos anencéfalos nada tem a ver com o aborto que, por definição, é a interrupção de uma gestação viável.

A anencefalia, que consiste na ausência total ou parcial do encéfalo e da caixa craniana, “é incompatível com a vida, não há qualquer chance de sobrevivência; todos morrem”, enfatizou o médico, apresentando dados para embasar sua convicção.

“Aproximadamente 75% dos fetos anencéfalos morrem dentro do útero. Dos 25% que chegam a nascer, todos têm sobrevida vegetativa que cessa, na maioria dos casos, em 24 horas, e os demais nas primeiras semanas de sobrevida.”

Anencefalia
Modelos de cérebros com diferentes níveis de desenvolvimento. Tanto a merocrania – anomalia raríssima na qual há um defeito menos acentuado na formação do órgão – quanto a anencefalia são incompatíveis com a vida. (imagem: reprodução)

A interrupção da gravidez em caso de anencefalia dos fetos é permitida em quase todo o mundo – na Europa, Canadá, China, Cuba, Japão, Índia, Estados Unidos, Rússia, Israel e na maioria dos países da Ásia. As exceções são, segundo Gollop, Irlanda, Malta e parte importante da América Latina, África e dos países islâmicos.

No Brasil, o julgamento do tema tem sido feito caso a caso e procedimentos são realizados legalmente por meio de alvará judicial. O primeiro alvará que concedeu o direito de decisão sobre a interrupção ou não da gravidez de feto anencéfalo à mulher ocorreu em 1989, em Rondônia. De lá pra cá, já foram cerca de 10 mil.

“O grande problema é que a obtenção do alvará varia de 24 horas a três semanas. É uma tortura para amulher”

“O grande problema é que a obtenção do alvará varia de 24 horas, em Brasília, onde o SUS é muito ágil, a três semanas. É uma tortura para a mulher e é isso que queremos modificar”, afirmou o médico.

Declarações recentes feitas pelo ministro do STF Carlos Ayres Britto à imprensa e boatos que circulam na casa levam Gollop a crer que a petição será de fato votada em agosto.

Causa, prevenção e risco

A anencefalia decorre de um erro de fechamento do tubo neural durante o desenvolvimento embrionário e representa a segunda malformação congênita mais comum – ocorre entre 1,4 e 2 vezes a cada mil gestações.

A ciência ainda não sabe explicar exatamente suas causas. Gollop explica que, do ponto de vista genético, ela é uma condição multifatorial, ou seja, influenciada por diversos fatores, por exemplo, ambientais, sazonais e geográficos.

Tampouco se sabe por que a incidência no Brasil é tão alta – o país é o quarto no mundo em número de anencefalias.

O diagnóstico pode ser feito por meio de ultrassonografia a partir da 12ª semana de gestação e, segundo Gollop, é 100% seguro. Infelizmente, a essa altura, não há nada que se possa fazer para salvar o feto.

Ultrassonografia
A ultrassonografia é capaz de diagnosticar com bastante segurança a ocorrência de anencefalia a partir da 12ª semana de gestação. Não há tratamento capaz de reverter a anomalia nesse ponto. (imagem: Wikimedia Commons)

O médico destacou, no entanto, que há formas de prevenir 50% das ocorrências, com a ingestão de ácido fólico dois meses antes e no primeiro mês da gestação. “Existe em qualquer lugar preparado vitamínico com ácido fólico. Com isso você reduz a ocorrência e a recorrência. Entretanto, o ácido fólico é apenas um dos fatores e, infelizmente, só com ele a gente não elimina todos os casos.”

Gollop falou ainda dos riscos envolvidos na manutenção desse tipo de gravidez, como hemorragias causadas por excesso de líquido amniótico no útero e descolamento prematuro da placenta, entre outras complicações.

Despenalização do aborto

Apesar da ênfase na importância da distinção entre antecipação terapêutica do parto de feto anencéfalo e aborto, Gollop, que lidera um grupo de trabalho sobre o tema, com apoio da SBPC, não deixou de abordar o assunto.

Conhecido por sua batalha em prol dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, o médico deixou clara sua posição contrária ao aborto, mas criticou duramente a lei atual, que prevê a prisão de mulheres que realizam o procedimento – “um milhão por ano no Brasil”.

“Juristas no Brasil inteiro concordam que a penalização do aborto é ineficaz”

“Juristas no Brasil inteiro concordam que a penalização do aborto é ineficaz porque proibir por força de lei que a mulher faça o aborto não impede que ela o faça”, disse Gollop. “O que acontece é que ela vai fazer o aborto em condições inseguras, ou seja, vai procurar um recurso que a coloca em risco de vida e isso, por sua vez, causa uma despesa para o Estado muito grande.”

Segundo dados do Ministério da Saúde, em 2005, o Sistema Único de Saúde (SUS) internou 250 mil mulheres em decorrência de complicações de aborto e gastou R$ 30 milhões para tratá-las.

Carla Almeida

Ciência Hoje On-line

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