Tradição, direito e valor

Segundo o Centro de Cultura Negra do Maranhão, existem cerca de 500 comunidades quilombolas no estado, que é o quarto do Brasil com maior percentual de negros em sua população e ainda abriga em torno de 35 mil indígenas, como mostram dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Não é de estranhar, portanto, que a discussão sobre o acesso aos saberes tradicionais dessas comunidades tenha papel de destaque na Reunião Anual da SBPC realizada justamente em São Luís – importância que se reflete na própria escolha da temática do encontro. 

A questão é complexa e envolve um processo de subordinação secular, interesses econômicos diversos, uma legislação inadequada e certo preconceito científico

A questão é complexa e envolve um processo de subordinação secular, interesses econômicos diversos, uma legislação inadequada e certo preconceito científico, além do direito das comunidades ao seu próprio conhecimento. O tema foi abordado pela antropóloga Ana Gita de Oliveira, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em uma das mesas-redondas do evento realizadas na segunda-feira (23/7). Ela defendeu a importância de proteger o patrimônio cultural desses grupos e a biodiversidade de seu território.

Os saberes tradicionais são aqueles transmitidos em comunidades que têm uma cultura ancestral, como as indígenas, quilombolas e ciganas. Esses saberes traduzem sua forma de ver o mundo, entender seu território e sua identidade e utilizar os recursos naturais disponíveis. “Saberes tradicionais e recursos genéticos a eles associados mobilizam bilhões de dólares no mundo e são o principal produto expropriado dessas comunidades”, destacou a antropóloga. “Porém, há um discurso paradoxal que associa esses saberes à pobreza – inclusive no plano das relações internacionais, onde são vinculados aos países rotulados como emergentes ou subdesenvolvidos.”

Para Oliveira, esse aparente paradoxo está associado à histórica falta de protagonismo desses grupos. “Pobreza não é só dinheiro, passa pelo acesso a seus próprios direitos, à possibilidade de opinar nas decisões que afetam suas próprias vidas e aos meios para falar sobre e por si mesmas, o que essas pessoas nunca tiveram”, ressaltou. “Mas é preciso lembrar que essas populações são as reais detentoras desse conhecimento, são elas que conhecem a biodiversidade, a nível genético, embora lidem com esse saber de forma diferente da ocidental.”

Ana Gita de Oliveira
A antropóloga do Iphan Ana Gita de Oliveira (em pé) fala em defesa da população que detém o saber tradicional e é mantida alheia às discussões-chave.

Legislação polêmica

No contexto brasileiro, o debate sobre o tema ganhou força após a realização da ECO-92, com a criação da Convenção sobre Diversidade Biológica. Em 2011, com a aprovação da Medida Provisória 2.186, que trata do acesso ao conhecimento tradicional e ao patrimônio genético a ele associado, a questão passou a ser discutida amplamente no meio científico – a normatização foi muito mal recebida por biólogos e antropólogos, que a acusam, por exemplo, de estimular a biopirataria (pela quantidade de entraves e barreiras legais colocados às pesquisas).

Hoje, qualquer iniciativa que queira explorar saberes tradicionais precisa do consentimento prévio e fundamentado das comunidades que os detêm

Apesar de reconhecer que a lei tem diversos pontos que precisam ser bastante modificados, Oliveira prefere destacar a importância dela para o debate sobre o direito aos saberes tradicionais. “De uma hora para outra, os pesquisadores se sentiram acuados por verem proibidas as práticas e os procedimentos utilizados até então na pesquisa nessa área”, avaliou a antropóloga. “É claro que a legislação tem problemas, mas ela é realmente um divisor de águas, por ter reconhecido os conhecimentos tradicionais como elementos importantes e constitutivos de determinada população, que detém os direitos sobre ele”, completou. 

A regulação deu a esses grupos um inédito poder de decisão sobre a exploração de seu próprio patrimônio, que deve estar atrelada a algum tipo de retorno. Hoje, qualquer iniciativa que queira explorar saberes tradicionais precisa do consentimento prévio e fundamentado das comunidades que os detêm – que possuem, inclusive, a prerrogativa de negar o acesso a esse conhecimento, caso acreditem que não haverá benefícios para si próprias. 

Não é preciso só uma revisão na lei, mas também repensar a forma como a própria ciência lida com esse conhecimento 

Segundo Oliveira, essa relação, hoje regulamentada pelo Iphan, é complicada. Ela defendeu, no entanto, que não é preciso só uma revisão na lei, mas também repensar a forma como a própria ciência lida com esse conhecimento – afinal, essa é uma relação de troca em que o saber tradicional deveria estar em pé de igualdade com a ciência moderna. “Trata-se de uma grande mudança de mentalidade”, disse a antropóloga. “Mas só o fato de os saberes dessas comunidades despertarem o interesse científico e de instituições de fomento já demonstra a sua importância”, acrescentou.

Oliveira considera uma atitude corajosa trazer o debate sobre essa legislação para a pauta de discussão do salão principal da Reunião Anual da SBPC. “É preciso enfiar o dedo nessa ferida, mas sem a ânsia de sair daqui com uma receita pronta”, avaliou. “A temática é complexa e o mais importante é reunir ciência e conhecimento tradicional no mesmo debate e dar visibilidade às perspectivas desse encontro.”


Marcelo Garcia

Ciência Hoje On-line

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