Trocar o arpão pelo binóculo


Baleia fotografada na Península Valdés, na costa da Patagônia, sul da Argentina. A região estaria incluída no santuário de baleias cuja criação foi defendida na COP8 (fotos: Michaël Catanzariti).

Sob a mira de um binóculo, a grande baleia dá um salto, faz acrobacias e volta à água, exibindo seu porte e sua graça. Nesse instante único, baleia e observador interagem de modo proveitoso para as duas partes: o homem admira um animal fascinante, o bicho sobrevive ao arpão dos baleeiros. Convictos de que a baleia e outros cetáceos valem muito mais vivos do que mortos, delegados do Brasil, Argentina e Nova Zelândia discutiram o uso lucrativo e não letal desses animais em evento paralelo da COP8.

 

A idéia é implementar um santuário de baleias no Atlântico sul – uma área de 25 milhões de km 2

onde as 54 espécies do animal (sete delas migratórias) estariam protegidas da caça. As pesquisas científicas seriam permitidas no local, e o turismo de observação poderia ser explorado como alternativa econômica. Segundo o neozelandês Allan Cook, chefe da delegação da Nova Zelândia na COP8, há anos essa prática econômica gera dividendos em seu país. Segundo Cook, o turismo protege o animal e dá emprego ao povo indígena maori. A Nova Zelândia tem uma história marcada pela pilhagem de baleias, mas hoje engrossa o time de países que buscam preservá-las.

 

A proposta do santuário foi apresentada pelo Brasil e outros países na 55ª Convenção Internacional da Baleia (CIB), realizada em Berlim, Alemanha, em 2003, e voltou a ser discutida nos anos seguintes. Mas os 3/4 dos votos necessários para ser aprovada não foram alcançados. O santuário se uniria a três outros já existentes (na Antártica, no Ártico e no oceano Índico), fortalecendo a proteção a esses cetáceos cada vez mais pressionados pela indústria baleeira.

 

Desde 1985 a CIB impôs uma espécie de moratória à caça às baleias para fins comerciais (a caça só é permitida com objetivos científicos). Mas países com tradição na matança do mamífero, como Japão e Noruega, fazem lobby para derrubar a moratória e ampliar a sua já enorme indústria baleeira. O caso japonês é notório pelo uso constante do pretexto científico para mascarar o suplício impingido ao animal. No entanto não se tem conhecimento de ‘estudos’ japoneses sobre o tema em publicações científicas.

 

A bióloga Karina Groch, do Projeto Baleia Franca, afirma que não há razão plausível (nem científica, nem econômica) para que se continue matando o animal. Segundo ela, as pesquisas dispensam o sacrifício das baleias, e não há mais demanda pela carne do animal ou por produtos fabricados a partir de seu óleo. “Hoje existem matérias-primas vegetais muito mais baratas”, diz Groch. A insistência de japoneses e noruegueses nessa prática se explicaria possivelmente por razões culturais. Ou por um complexo de capitão Ahab, personagem do clássico romance Moby Dick

que tenta desesperadamente caçar a baleia-branca que dá nome à obra do escritor norte-americano Herman Melville (1819-1891), publicada em 1851. Uma caça justificada pela própria caça.

 

Caçar ou preservar?

 

Baleia fotografada na Peninsula Valdés. A Argentina é um dos países mais engajados na luta pela conservação das baleias.

A CIB foi criada em 1946 pela Carta da Baleia, das Nações Unidas, com o objetivo de regulamentar a caça ao animal. De lá para cá, as reuniões anuais da entidade têm se caracterizado pelo acirrado embate entre países baleeiros e conservacionistas. O Brasil sempre foi favorável à matança de baleias, mas mudou de postura. Em 1987 criou a lei federal que proíbe a caça ao animal em águas nacionais e hoje, ao lado de Argentina, Austrália, Nova Zelândia e África do Sul, lidera o bloco ‘pró-baleias’ na CIB. “A discussão é delicada, uma vez que a Convenção tende a defender interesses dos países anglo-saxões”, diz o embaixador argentino Eduardo Iglesias, que representa seu país na CIB. Iglesias propõe um amplo debate sobre a preservação da vida selvagem marinha na Convenção da Diversidade Biológica (CDB) e maior diálogo entre as duas convenções.

 

Embora o tema esteja previsto em sua agenda, a CDB não trata do problema específico das baleias. A preservação da biodiversidade marinha e costeira está na pauta de discussões da COP8, e a meta é proteger 30% dos hábitats marinhos até 2012 (o número atual é de 0,1%). O principal problema nesses ambientes é a pesca de arrastão – que também vitima baleias. Por isso na reunião desta quarta-feira, 22 de março, vários países defenderam uma moratória geral para esse tipo de pesca. Japão e Noruega não aceitaram a proposta, defendendo a análise de cada caso isoladamente.

 

Enquanto os delegados discutem o problema nas frias reuniões da COP e da CIB, os cetáceos continuam a ser sacrificados em vários pontos da Terra. Recentemente a Islândia voltou a fomentar a caça às baleias, e o Japão tem pressionado pequenos países a aderirem à sua ‘causa’, ampliando o lobby baleeiro na CIB. Mas quem sabe no fim dessa história o caçador tenha o mesmo fim do capitão Ahab, da obra de Melville, que acaba enforcado pela corda de cânhamo presa ao arpão atirado contra Moby Dick.

 

 

 

Murilo Alves Pereira

 

Especial para a CH On-line / PR
24/03/2006