Escravos manuseando um engenho de cana-de-açúcar no Brasil, retratados pelo pintor e desenhista francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848). A imagem clássica da escravidão como um sistema predatório em que os escravos estavam vinculados principalmente a latifúndios e distantes de suas famílias está sendo reavaliada pelos historiadores.
A forma como a história enxerga a escravidão no Brasil tem mudado nos últimos anos. A imagem clássica de um sistema predatório em que os escravos estavam atrelados principalmente a latifúndios e distantes de suas famílias está cedendo lugar a uma visão que tem explicado melhor a estabilidade desse sistema. A nova historiografia da escravidão foi discutida na reunião da SBPC por um de seus principais expoentes, o historiador Manolo Florentino, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Em sua conferência, Florentino discutiu alguns elementos que permitiram que o sistema de escravidão no Brasil se mantivesse livre de ameaças até por volta de 1850. A facilidade de acesso à mão-de-obra escrava – ou a “natureza democrática” da escravidão, nas palavras do abolicionista Joaquim Nabuco (1849-1910) – foi um dos fatores que garantiram a continuidade desse sistema.
“Mesmo as camadas mais pobres dos homens livres tinham acesso à mão-de-obra escrava e, nesse sentido, aderiam à escravidão como sistema”, explica Florentino. Assim, a imagem de grandes plantéis de escravos em grandes propriedades que praticavam a plantation não representa um retrato fiel da distribuição dos cativos. “Os proprietários mais pobres tinham até um terço dos escravos”, estima o historiador. “Esse é um traço encontrado em todas as regiões escravistas do país.”
O papel da família dos escravos é outro aspecto que tem sido revisto. A historiografia clássica atribui pouco ou nenhum valor às relações familiares dos cativos, mas interpretações recentes defendem que elas eram um elemento estabilizador e pacificador, fundamental para garantir a continuidade do sistema.
“Creio que não tenha sido dada a importância devida ao papel da família escrava”, avalia Florentino. “Ela é um elemento sistêmico, fundamental para a reprodução do sistema da escravidão. O escravo socializado por via parental foge muito menos do que o desenraizado do ponto de vista familiar.”
Historiografia robusta e pujante
Para o sociólogo Adalberto Moreira Cardoso, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), que apresentou a conferencia de Florentino, a nova visão sobre a escravidão é fruto do aumento recente dos estudos feitos na área. “As fontes sempre estiveram aí, mas não havia quem as estudasse”, explica Cardoso. “Esse campo se profissionalizou e o sistema de pesquisa se consolidou no Brasil inteiro. Nossa historiografia hoje é robusta e pujante, produz em grande quantidade.”
Em sintonia com a visão de Cardoso, Florentino atribui a renovação do olhar acadêmico sobre a escravidão à expansão dos cursos de pós-graduação em história no Brasil. “No início dos anos 1990 tínhamos cerca de 10 cursos de mestrado e doutorado e hoje temos quase 60”, afirma. “A escravidão está disseminada como objeto de pesquisa por todo o país e tem sido abordada sob uma imensa diversidade teórica e metodológica, o que está enriquecendo muito os estudos sobre o tema.”
Florentino avalia que a historiografia da escravidão tem uma agenda importante a tratar no futuro. “Falta-nos entender melhor o que fazia um escravo ‘aceitar’ a sua condição, ou, em outras palavras, quais elementos permitiram ao escravo aumentar seu grau de autonomia dentro da escravidão, dando um alto grau de estabilidade ao sistema”, explica. “Aprofundar essa questão é o tema mais importante de estudos que temos pela frente.”
Bernardo Esteves
Ciência Hoje On-line
18/07/2008