Um romance de muitas dimensões, mas pouca penetração

Capa de uma das edições inglesas de Flatland e da tradução brasileira de 2002

Com pouquíssima repercussão nos meios literários e entre os aficionados pelo gênero, foi lançada em 2002, pela Conrad Editora, a tradução para um clássico da ficção científica satírica, o romance Flatland – A Romance of Many Dimensions , lançado em 1884 pelo inglês Edwin A. Abbott. O livro foi traduzido por Leila de Souza Mendes e teve o título em português bastante fiel ao original inglês – Planolândia: Um Romance de Muitas Dimensões . Temos o registro de duas críticas publicadas quando o livro foi lançado: uma de Carlos Orsi , no site do jornal O Estado de São Paulo , em 26 de setembro de 2002, e outra de Fábio Fernandes no Web Insider , em 22 de outubro de 2002.

 
Desde sua primeira publicação, Flatland permaneceu uma obra pouco conhecida e, talvez por isso, também pouco apreciada, embora fosse venerada por alguns poucos iniciados – como o saudoso Carl Sagan. Nesse sentido, foi uma obra que sempre permaneceu underground em suas diferentes épocas e locais de lançamento – o romance foi traduzido para nove línguas e conta com dezenas de edições na Inglaterra. Talvez por isso tenha ficado “escondido” também por aqui, desde o seu lançamento em 2002.
Quando foi escrito, em 1884, Flatland foi inicialmente considerado apenas uma obra de diversão para crianças e adolescentes. Apenas com o passar dos anos é que acabou sendo reconhecido como um magnífico romance de ficção científica, tão profético quanto os trabalhos de Júlio Verne e H. G. Wells. Isso porque Abbott, trabalhando com formas geométricas e lugares bizarros, de uma, duas, três e até quatro dimensões, introduziu aspectos relacionados aos conceitos da relatividade e hiperespaço, anos antes das propostas revolucionárias de Albert Einstein.

Planolândia é uma mistura bem elaborada de matemática, geometria, crítica social e humor. Escrito com um humor ferino e satírico, o romance nos leva a uma jornada a diferentes mundos (em diferentes dimensões físicas) e nos dá, no fim, uma visão diferente de nós mesmos.

Quem foi o autor

Edwin A. Abbott (1838-1926) foi um vitoriano clássico, de grande inteligência e espirituosidade e que fez muito sucesso à sua época como escritor, acadêmico, educador e teólogo. Sua formação escolar foi realizada no St. John’s College, de Cambridge. Edwin teve um papel importante na educação escolar em Londres, de 1865 a 1889, quando foi “Headmaster of the City of London School”. Foi autor de um dos clássicos da gramática escolar inglesa, defendendo a importância do estudo da língua inglesa, para todos os estudantes, através da obra Shakespearian Grammar , de 1870.

Com a idade de 51 anos, em 1889, Abbott se afastou de todas as suas outras atividades, dedicando-se apenas a uma vida acadêmica, produzindo, a partir de então, numerosas obras: Silanus, the Christian (1907), Apologia: An Explanation and Defense (1907), Message of the Son of Man (1909), Light on the Gospel from an Ancient Poet (Odes of Solomon) , de 1913.

A trama é narrada em primeira pessoa pelo personagem principal, A. Square (satiricamente, “Um Quadrado”, em português), que foi o pseudônimo de Abbott na primeira edição do livro. O protagonista nasceu em Planolândia, um mundo limitado a apenas duas dimensões, inequivocamente plano. Na primeira parte do livro – “Este mundo” –, Square descreve sua terra natal, habitada por uma hierarquia de formas geométricas que determinam uma ordem social rígida e conservadora, mas que ainda assim permite uma certa mobilidade social.

 
O prestígio social relaciona-se ao número de lados e à regularidade de cada indivíduo: quanto mais lados, mais alta a classe. A classe social mais baixa é a dos triângulos isósceles, e a mais alta, a dos círculos (polígonos com um número infinito de lados). Entre eles, estão os triângulos eqüiláteros (a classe média), os quadrados e, acima deles, os polígonos regulares (a aristocracia). As mulheres, não por acaso, são apenas um segmento de reta, que vistas pelos “planolandeses”, reduzem-se a um ponto (!), mas que podem causar sérios acidentes, como perfurar um transeunte distraído.
 
Na segunda parte do livro – “Outros mundos” –, o protagonista relata uma viagem feita por ele a diferentes terras, semelhante nesse sentido às viagens de Gulliver. Square descreve sucessivamente a Pontolândia – um mundo sem dimensão –, a Linhalândia – o mundo de uma única dimensão –, a Espaçolândia – o mundo de três dimensões, como o nosso – e anuncia até a existência de mundos com quatro, cinco ou mais dimensões.
 
Em Flatland , são discutidas algumas questões relacionadas à natureza da Planolândia e a forma como seus habitantes “vêem” a Linhalândia e a Pontolândia. Em especial, o Sr. Square se vê desafiado a entender um mundo que não existe nos seus conceitos, quando recebe a visita de um “alienígena” vindo da Espaçolândia e quando visita a mesma Espaçolândia. O resultado disso tudo é que Square, ao voltar a seu país natal, se transforma em um visionário de mundos não-existentes (ao menos na mente dos habitantes da Planolândia). Pior que isso, ele se transforma literalmente num profeta e passa a ser segregado ao propor uma teoria das três dimensões.
 
Flatland é uma excelente indicação para físicos, matemáticos, professores de ciências, de física e matemática e, obviamente, os leitores de ficção científica. O romance permite uma leitura direta, quase que geométrica apenas, usando uma figura de linguagem, sendo extremamente interessante só por isso. Permite também vôos mais amplos, de cunho social, em razão das críticas que Abbott faz da sociedade vitoriana através da sua escrita ferina e satírica.
Clique aqui para ler a seqüência desta resenha, onde são apresentados outros livros que exploram alguns dos temas explorados no romance de Edwin Abbott.

Referências:

Planolândia: Um Romance de Muitas Dimensões
. Edwin A . Abbott. Tradução de Leila de Souza Mendes. São Paulo: Conrad. 2002, 128 p.

Flatland, A Romance of Many Dimensions
. Edwin A. Abbott. New York: Penguin Putnam. Signet Classic, 1984, 160 p. (há uma edição da Dover, Dover Trift, 1992, 96 p.).

Nelson Marques
Núcleo de Comunicação em Cultura, Ciência e Tecnologia
Museu Câmara Cascudo
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Bernardo Esteves
Ciência Hoje On-line
23/05/05