Uma bactéria sui generis

Os australianos Barry J. Marshall e J. Robin Warren, que vão dividir o Nobel de Medicina 
de 2005 (fotos: reprodução)

A descoberta da bactéria Helicobacter pylori e seu papel na gastrite e na úlcera péptica valeu aos cientistas australianos Berry J. Marshall e J. Robin Warren o Prêmio Nobel de Medicina de 2005, anunciado nesta segunda-feira pelo Instituto Karolinska, na Suécia.
 
Até 1982, quando Marshall e Warren descobriram a H. pylori , considerava-se que estresse e estilo de vida eram as principais causas de úlcera. Graças ao trabalho desses dois cientistas, que desafiaram dogmas preestabelecidos, hoje não há mais dúvida de que essa bactéria é responsável por mais de 90% das úlceras duodenais e de 80% das úlceras gástricas.
 
A ligação entre a infecção por H. pylori e as subseqüentes gastrite e úlcera foi estabelecida a partir de estudos epidemiológicos que envolveram voluntários humanos tratados com antibióticos. Usando tecnologias apropriadas, Marshall e Warren demonstraram que a H. pylori provocava doenças. Por meio da cultura de bactérias, tornaram possível a realização de estudos científicos com H. pylori . Essa bactéria está presente apenas em seres humanos e se adaptou perfeitamente ao estômago, um ambiente hostil à vida cujo pH gira em torno de 1 (muito ácido).
 
A H. pylori é uma bactéria espiralada gram-negativa que coloniza o estômago de aproximadamente 50% dos seres humanos. Em países desenvolvidos, a infecção é menos comum do que nos países em desenvolvimento, onde virtualmente todos os indivíduos podem estar infectados.

O esquema representa o caminho que vai da infecção por Helicobacter pylori à úlcera gástrica ou duodenal. Na infecção (A), a bactéria atinge inicialmente a porção inferior do estômago (antro). Em seguida, ela inflama a mucosa gástrica (B). Esse processo, conhecido como gastrite, pode levar à úlcera gástrica ou duodenal (C), caracterizada por hemorragias em sua forma mais grave (arte: Nobel Committee for Physiology and Medicine).

A infecção é, em geral, contraída na infância, freqüentemente transmitida de mãe para filho, e a bactéria pode permanecer no estômago pelo resto da vida de uma pessoa. Essa infecção crônica se inicia na parte inferior do estômago (antro). Como divulgado pela primeira vez por Warren, a presença de H. pylori está sempre associada a uma inflamação da mucosa gástrica, que pode ser constatada pela presença de um infiltrado de células inflamatórias.

 
Na maioria dos indivíduos a infecção por H. pylori é assintomática. Mas cerca de 10% a 15% das pessoas infectadas desenvolvem úlcera em algum momento de sua vida. Essas úlceras são mais comuns no duodeno do que no estômago, e as complicações mais graves incluem hemorragia e perfuração do órgão acometido.
 
Em algumas pessoas, a bactéria também infecta o corpo do estômago (a parte mais alta do órgão), o que resulta em uma inflamação que se espalha e predispõe o indivíduo não somente à úlcera na região do corpo do estômago, mas também ao câncer de estômago. A inflamação da mucosa estomacal é também um fator de risco para um tipo especial de neoplasia linfática.
 
A infecção por H. pylori pode ser diagnosticada por meio de testes com anticorpos, identificando-se o organismo em biópsia durante uma endoscopia ou através de testes respiratórios não-invasivos que identificam a produção de uma enzima da bactéria no estômago. O combate à bactéria costuma ser feito por meio de antibióticos específicos.
 
Muitas doenças humanas, como a doença de Crohn, a artrite reumatóide e aterosclerose, se devem a inflamações crônicas. A descoberta de que a úlcera, uma das mais comuns doenças do ser humano, tem causa microbiana estimulou a pesquisa de microrganismos como possíveis causadores de outros estados de inflamação crônica.
 
Ainda que isso não possa ser afirmado com segurança, dados recentes sugerem que uma disfunção no reconhecimento de produtos microbianos pelo sistema imunológico humano pode resultar no desenvolvimento de uma doença. A descoberta de H. pylori levou a uma compreensão maior da conexão entre infecção crônica, inflamação e câncer.
 

Micrografia eletrônica da bactéria H. pylori (A) e de um de seus
flagelos (B), que permitem que a bactéria atravesse a camada de muco do estômago e se aloje junto das células que o revestem (fotos: Dulciene Queiroz – Fac. de Medicina/UFMG)

Em todo o mundo, diversos trabalhos com H. pylori passaram a ser realizados a partir das descobertas de Marshall e Warren. Em 1985, uma equipe de pesquisadores do Laboratório de Bacteriologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em Belo Horizonte, já estudava sua ação no estômago humano e, pouco depois, obteria resultados importantes publicados em revistas científicas internacionais de prestígio.

 
Pesquisas recentes ali realizadas se voltam para a caracterização genética da H. pylori e de seus portadores, tentando identificar indivíduos com maior probabilidade de contrair as doenças causadas pela bactéria. O grupo se dedica também à investigação dos mecanismos de transmissão desse microrganismo, tendo realizado um importante estudo em Minas Gerais e em outras regiões do Brasil no qual mostrou que a principal forma de contágio se dá a partir do contato mãe-filho.
 

Para a bacteriologista Dulciene Queiroz, coordenadora das atividades do laboratório da UFMG, o prêmio foi merecido. “A descoberta dos pesquisadores australianos mudou paradigmas na microbiologia”, avalia. “Até então, sequer se acreditava que o ambiente estomacal pudesse ser colonizado.” A pesquisadora, que conheceu os laureados em congressos científicos internacionais e visitou o laboratório de Warren em Perth, na Austrália, em 1990, conta que o trabalho de ambos mostrou pela primeira vez que uma bactéria poderia levar ao câncer. “Marshall é uma pessoa mais expansiva, de fácil comunicação, ao passo que Warren, como a maioria dos patologistas, é mais reservado, preferindo ficar em seu laboratório na companhia de um microscópio”, disse Queiroz.

Célio Yano
Especial para a CH On-line/PR
03/10/05