Uma referência do feminismo

A britânica Doris Lessing, ganhadora do Nobel de literatura de 2007 (foto: Scanpix/Ulrich Perrey).

A escritora britânica Doris Lessing, autora de mais de 60 obras em menos de 60 anos, é a laureada com o Nobel de literatura em 2007. Engajada com questões sociais desde a juventude na África, Lessing sempre permeou seu trabalho com temas ligados à própria vivência e é considerada uma referência pelo movimento feminista. Trabalhou com poesia e prosa e escreveu ainda obras de ficção científica. Segundo a Academia Sueca, o prêmio consagra sua obra que, “com ceticismo, fogo e poder visionário, sujeitou uma civilização dividida ao escrutínio”.

Doris Lessing nasceu Doris May Taylor, em 22 de outubro de 1919, em Kermanshah, na antiga Pérsia, região que hoje corresponde ao Irã. Aos cinco anos de idade, mudou-se com a família para a Rodésia, atual Zimbábue, onde viveu até 1949. Trabalhou como babá, telefonista, estenógrafa e jornalista.

Em 1939 casou-se com Frank Charles Wisdom, com quem teve dois filhos, John e Jean. O casal se separou em 1943 e, em 1945, Doris casou-se com Gottfried Lessing, imigrante judeu que conheceu em um grupo marxista que se preocupava com a questão racial. Com Gottfried teve mais um filho, Peter, antes de se divorciar pela segunda vez, em 1949. Na ocasião, mudou-se para Londres, onde rapidamente se estabeleceu como escritora.

Entre 1952 e 1956, foi membro do Partido Comunista Britânico e militante ativa em campanhas contra as armas nucleares. Devido à visão crítica que tinha do regime de apartheid , na África do Sul, ficou proibida de entrar no país até 1995. Depois de uma breve visita à Rodésia, em 1956, também foi banida dessa nação pelo mesmo motivo.

Começou como romancista com The grass is singing [A grama está cantando] (1950), texto que analisa a relação entre uma mulher de fazendeiro branca e seu empregado negro. A história se passa na África, tema recorrente na obra de Lessing, e é, ao mesmo tempo, uma tragédia baseada em amor-ódio e um estudo sobre conflitos raciais intransponíveis.

De forma semi-autobiográfica, a série Children of the violence [Crianças da violência] (cinco volumes, 1952-1969) também é amplamente ambientada na África. A seqüência foi precursora de muitos trabalhos sobre a representação da mente e do comportamento de mulheres independentes. Com esses livros, Lessing criou um equivalente moderno para o chamado ‘romance de aprendizagem’ (no qual é exposto o processo de desenvolvimento de um personagem, geralmente desde sua infância até um estado de maior maturidade).

Obra-prima
The golden notebook [O caderno dourado], lançado em 1962, é a obra-prima de Lessing. O movimento feminista considera o livro um trabalho pioneiro para a causa e um marco de referência para estudos sobre a relação homem-mulher no século 20. Utiliza uma complexa técnica narrativa que revela o quanto conflitos emocionais e políticos estão interligados. A personagem principal, Anna Wulf, tem cinco cadernos nos quais escreve seus pensamentos sobre a África, política e o partido comunista, sua relação com homens e sexo, análises e interpretações de sonhos.

O escritor e jornalista José Castello, ex-editor do caderno Idéias & Livros do Jornal do Brasil , lembra que, em obras posteriores, Lessing passou a ser influenciada pelo psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961). “Ela tornou-se bastante interessada por lendas orientais e por dimensões mais profundas do destino humano”, conta.

Quatro dos títulos de Doris Lessing traduzidos para o português: O sonho mais doce, Debaixo da minha pele, Os agentes sentimentais do império Volyen e Shikatsa . Os dois primeiros foram lançados pela Companhia das Letras, e os outros, pela Nova Fronteira.

A partir dos anos 1970, a escritora começou a flertar com o gênero da ficção científica. Lessing classifica seus romances escritos durante esse período como de ‘ficção espacial’, uma tentativa, no espírito do Romantismo, de expandir o conhecimento humano para compreender regiões além do controle da razão e do ego.

 

A série Canopus em Argos(cinco volumes, 1979-1984) aborda o desenvolvimento da espécie humana após uma guerra atômica. Lessing mescla temas como colonialismo, guerra nuclear e desastres ecológicos com observações a respeito da oposição entre princípios masculinos e femininos. A série, composta pelos livros Shikasta(1979), Casamentos entre as zonas 3, 4 e 5(1980), As experiências em Sirius(1981), O planeta 8: Operação Salvamento(1982) e Os agentes sentimentais do império Volyen(1983), foi publicada no Brasil pela editora Nova Fronteira. Além destes, a mesma editora lançou ainda  Memórias de um sobrevivente

(1974), traduzido por Clarice Lispector.

 

Nos anos 1994 e 1997, Lessing publicou duas autobiografias: Debaixo da minha pelee Andando na sombra, que marcam um novo estilo em sua literatura. Ela fala não apenas de sua vida, mas de toda a época: a Inglaterra em seus últimos dias de império. O romance O sonho mais doce(2005) parece surgir isolado como forma de narrativa ficcional. A Companhia das Letras traduziu, além dessas três obras, Amor, de novo

(1996).

 

Para José Castello, a divulgação do Nobel deste ano foi um tanto surpreendente. “O prêmio costuma contemplar ideologias, mais do que a literatura”, avalia. “Desta vez, a premiação é para a escritora”, diz. Castello conta que Lessing, apesar de engajada com ideais feministas e socialistas, não tem uma visão extremista do mundo, encarando-o com uma forma de ‘desilusão saudável’.  

Célio Yano
Especial para a CH On-line
11/10/2007