Uma viagem para Lucca

Em 1520, sete anos após escrever O príncipe, Nicolau Maquiavel foi contratado pelo novo líder de Florença, Júlio de Médici (1478-1534), para compor uma história da cidade e trabalhar em sua diplomacia. Uma de suas primeiras missões foi uma viagem oficial à pequena cidade de Lucca, sobre a qual ele escreveu dois textos.

O primeiro é uma biografia do condottieri toscano e libertador de Lucca no começo do século 14, Castruccio Castracani. Ensaio de exaltação do herói, o texto encontrou rápida fortuna crítica e a edição italiana de 1550 de O príncipe já vinha acompanhada de A vida de Castruccio Castracani de Lucca. Mary Shelley, autora de Frankenstein, recontaria essa história três séculos mais tarde em Valperga: or The life and adventures of Castruccio, prince of Lucca (1823).

O segundo texto, intitulado Sommario delle cose della citta di Lucca (Sumário das coisas da cidade de Lucca), é um breve ensaio sobre a vida política local. Na pequena cidade liberta por Castracani, governava uma senhoria de nove magistrados, além de três gonfaloneiros de justiça – algo intermediário entre o que seria hoje um prefeito e um xerife, cada um advindo de um dos três condados que compunham a cidade.

Junto a esta senhoria, um conselho de 36 cidadãos, com mandato de seis meses, exercia funções eletivas, auxiliando na designação dos ocupantes de funções públicas e na eleição de um conselho de 72 cidadãos, com funções bem mais amplas e mandato de um ano. O mandato da senhoria era de dois meses, vedada a reeleição.

A estrutura administrativa de cada condado da cidade estava sob o domínio da senhoria, mas a cidade como um todo, e seus cidadãos, não

Ao descrever o papel político da instituição da senhoria em Lucca, Maquiavel afirma que ela “é como um primeiro motor de todas as ações que se promovem no governo da cidade”. A sua autoridade “sobre o seu condado é amplíssima; sobre os cidadãos é nula”. Ou seja, a estrutura administrativa de cada condado da cidade estava sob o domínio da senhoria, mas a cidade como um todo, e seus cidadãos, não.

Estes, argumenta Maquiavel, estavam sob o jugo direto de um outro órgão, o conselho geral, composto por 72 cidadãos, eleito pela senhoria e por 12 pessoas escolhidas pelo conselho dos 36. Segundo Maquiavel, este conselho geral “é o príncipe da cidade”, “faz e desfaz as leis”, “exila e mata cidadãos”; enfim, “não há apelo possível nem nada que o freie”. Tratava-se de um poder legislativo na pequena república. Com amplos poderes sobre os cidadãos, judiciais e policiais inclusive – até mesmo os condottieri, mistura de chefe de polícia e líder militar, eram escolhidos por eles.

Castruccio Castracani
Maquiavel escreveu a biografia de Castruccio Castracani (1281-1328), libertador de Lucca, ‘príncipe em todo o gênero de fortuna’. A escritora Mary Shelley também se interessou pelo personagem, em torno do qual construiu o romance histórico ‘Valperga’ (1823), em que narra sua vida e aventuras. (imagem: Biblioteca Statale di Lucca)

Maquiavel parece particularmente interessado neste ‘pequeno’ detalhe da organização da república de Lucca. De um lado, um poder executivo, um primeiro motor que se autoinstitui, mas cujo poder não extrapola os limites da administração interna e da diplomacia da cidade, e cujos mandatos, de tão efêmeros, tornam a corrupção improvável.

Do outro lado, o conselho geral, um poder legislativo instituído pela senhoria e por um conselho autoinstituído de 36 cidadãos, detinha poderes tão extensos que ele afirma se tratar do “verdadeiro príncipe” da cidade. Príncipe? Ora, Lucca era uma república!

Poderes separados

O príncipe é uma obra silenciosa acerca da separação de poderes. Nela, o conceito medieval de signoria é reinterpretado para conformar a necessidade dos líderes de principados novos de obter a aquiescência dos cidadãos e da nobreza de suas cidades.

Ao descrever o conselho geral de Lucca como “verdadeiro príncipe”, em contraposição ao corpo detentor de signoria, “o primeiro motor”, Maquiavel parece admitir que, 200 anos depois da libertação por Castruccio Castracani, Lucca já não é mais principado novo, e que as regras por ele elaboradas para um príncipe novo não se aplicavam.

Na pequena Lucca, a administração das coisas da cidade e a administração da justiça para os cidadãos eram atividades separadas

Na pequena Lucca, a administração das coisas da cidade e a administração da justiça para os cidadãos eram atividades separadas. Poderes separados. O rodízio nas funções, no exercício de poderes executivos, de um lado, ou de poderes judiciais e legislativos, de outro, era tão acelerado – dois meses, seis meses, um ano, dois anos – que assegurava que ninguém ocupasse posto de mando ou assento no “verdadeiro príncipe” por tempo demasiado.

Esta era a forma (nem tão) sutil com que os lucchesi demonstravam sua desconfiança da virtude dos homens e depositavam sua confiança na perenidade de decisões e leis produzidas desinteressadamente por oficiais prestes a sair – sem poder voltar – do cargo que exercem.

Lucca
A estrutura administrativa de Lucca – aqui em imagem de Giovanni Sercambi (1348-1424) – foi analisada por Maquiavel, que comparou seu conselho geral a um ‘verdadeiro príncipe’. (imagem: Wikimedia Commons)

O elogio de Maquiavel à vida política de Lucca denuncia algo frequentemente negligenciado pelos intérpretes de O príncipe. Para ele, a gramática da política, no momento da fundação de uma nova república, exige homens com virtú, como Castracani e seu ídolo florentino Cesare Borgia.

Mas, no momento de reprodução da vida republicana, no esforço de proteger a república da corrupção interna e da conquista externa, a gramática da política depende menos da virtude dos homens e mais da virtude das leis, este “grande freio para os homens”, nas palavras de Maquiavel.

Este é o terceiro texto da série ‘Maquiavel, Maquiavéis’. Clique aqui para ler os outros artigos.

José Eisenberg
Departamento de Ciências Sociais
Universidade do Estado do Rio de Janeiro