Uma voz anticonformista

Pela primeira vez na história, o Nobel de literatura, divulgado na manhã desta quinta-feira, 7 de outubro, vai para a Áustria. O prêmio, concedido pela Real Academia Sueca, reconhece a obra polêmica da poeta, romancista e dramaturga Elfriede Jelinek, marcada por vigoroso conteúdo sociopolítico e forte teor sexual.

Autora de 27 livros, entre romances, peças de teatro e poesia — com a qual iniciou a carreira literária em 1967, na coleção Lisas Schatten –, Jelinek nasceu na província austríaca de Styria, a 20 de outubro de 1946. Estudou música no Conservatório de Viena, onde se formou organista; na Universidade de Viena, se dedicou ao teatro e à história da arte. No início dos anos 70 morou em Roma e Berlim, passando a viver entre Viena e Munique após se casar.

Do contato com o movimento estudantil, nasceram as obras Wir sind lockvögel baby! , de 1970, e Michael. Ein Jugendbuch für die Infantilgesellschaft , de 1972. Ambas criticam duramente a cultura popular e sua maneira hipócrita de retratar a vida.

Seu reconhecimento veio com os romances Die Liebhaberinnen , de 1975, Die Ausgesperrten , de 1980, e Die Klavierspielerin , de 1983. Embora versem sobre temáticas diferentes, todos eles fazem uma crítica feroz ao sexismo, à opressão política e à forma como o mundo ocidental se organiza. Die Klavierspielerin foi publicado em Portugal pela Edições Asa, sob o título A pianista , e deu origem ao filme A professora de piano , de Michael Haneke, lançado em 2001 e disponível no Brasil em vídeo e DVD.

Segundo Isabela Kestler, professora do Departamento de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e especialista em literatura alemã contemporânea, foi com Lust que Jelinek inscreveu seu nome definitivamente na história da literatura austríaca. E foi quando passou também a ser duramente combatida pelo conservador público literário da Áustria, que a acusou de pornográfica por conta do modo como aborda a sexualidade em sua obra.

A autora não é polêmica só quando fala de sexo. “Ela ataca o catolicismo radical, a xenofobia e o anti-semitismo, traços marcantes da Áustria, berço de Hitler e onde o partido neonazista esteve coligado ao governo em 2000”, diz Kestler, que estava no país à época. Nessa ocasião, lembra-se a professora da UFRJ, o partido empreendeu uma campanha em outdoors contra a obra da laureada.

Mesmo rejeitada por parte dos leitores, Elfriede Jelinek é reconhecida pela crítica. Ganhou um dos mais importantes prêmios de seu país, o Bremer Literature Prize, em 1996, além de outros por sua obra teatral e poética. “É certamente a autora austríaca mais conhecida de sua geração e a única que condena as práticas políticas de seu país com veemência”, afirma Kestler.

Para o professor Georg Otte, da área de língua e literatura alemã da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a comissão que concede o Nobel de literatura sempre valorizou autores que remam contra a corrente, cuja voz se ergue contra discriminações e injustiças sociais. Nesse sentido, a escolha de Elfriede Jelinek não surpreendeu, pois sua obra é marcada por uma crítica implacável à hipocrisia, à violência, à banalização e ao conformismo.

“Na vida pessoal, o espírito de confrontação é o mesmo revelado em seus textos”, conta Otte. Ela se posiciona francamente seja contra a expansão da extrema-direita na Áustria, personificada na figura do político Jörg Haider, ou contra a imprensa de seu país, que noticia casos graves de racismo, como o assassinato de ciganos em Viena, ao lado de amenidades esportivas. “Se a linguagem do cotidiano se presta a encobrir coisas, a utilizada por Jelinek, ao contrário, quer desnudá-las.”

Aline Gatto Boueri
Ciência Hoje On-line
07/10/04