Se a luta contra o protozoário Plasmodium falciparum, um dos causadores da malária, começa a apresentar as primeiras vitórias na África e na América, um novo atlas mundial de risco desenvolvido pela Universidade de Oxford (Reino Unido) mostra que a erradicação da doença ainda está longe de acontecer.
Divulgados no início do mês, os mapas retratam a dispersão mundial de outra espécie do parasita, Plasmodium vivax. Menos virulenta, mas com tratamento mais complicado, ela é a mais comum no território brasileiro e coloca em risco cerca de 3 bilhões de pessoas em todo o mundo.
Os pesquisadores trabalharam em colaboração com os governos locais para reunir dados sobre taxas de infecção da doença, o que permitiu a construção de mapas de prevalência e de risco para o P. vivax.
O Projeto Mapa da Malária (MAP, na sigla em inglês) já havia publicado, em 2009, um atlas da presença do P. falciparum no mundo, mostrando seu predomínio na África, e periodicamente complementa as informações com mais dados e mapas sobre a doença.
No caso do P. vivax, os mapas apontam grande presença do parasita no sudoeste asiático, inclusive em áreas urbanizadas como Mumbai, na Índia. Na América, ele está presente na região amazônica, especialmente no Brasil, na Colômbia e no Peru, e em países da América Central, como o Haiti.
O atlas mostra uma pequena presença do P. vivax na África. A explicação seriam mutações nos glóbulos vermelhos do sangue da população da África Ocidental, que a tornam imune ao parasita. É provável, afirmam os autores do mapa, que a região tivesse grande presença do protozoário nos milênios passados, o que teria levado à seleção dos indivíduos resistentes.
Desafio para erradicação
No Brasil, as duas espécies circulam nas mesmas regiões. Segundo o Ministério da Saúde, embora os números estejam diminuindo, cerca de 300 mil casos de malária são registrados anualmente, com predomínio do P. vivax.
O parasitologista Luiz Hildebrando da Silva, diretor do Instituto de Pesquisa em Patologias Tropicais (Ipepatro), de Rondônia, explica que ações de controle adotadas na área endêmica fizeram com que o P. falciparum, dominante há algumas décadas, passasse a causar apenas 20% dos registros atuais.
Apesar de serem responsáveis pela mesma doença, as espécies constituem desafios diferentes para a saúde pública. Mais virulento, o P. falciparum se desenvolve mais rapidamente e tem transmissão mais fácil. O P. vivax, no entanto, é capaz de permanecer preservado no fígado do organismo infectado por meses ou até anos após o desaparecimento das primeiras manifestações clínicas da doença e provocar recaídas sucessivas.
Os medicamentos tradicionais contra o P. falciparum controlam a fase aguda da infecção pelo P. vivax, mas para eliminar o parasita só há um tipo de composto, a primaquina. “No entanto, ele é tóxico e precisa ser administrado por 14 dias, o que torna as taxas de abandono do tratamento e de recaída muito altas”, explica Silva.
Problemas na interpretação
O parasitologista pondera que o atlas não retrata bem a realidade da doença. “A presença do protozoário é representada por grandes faixas, muitas em regiões de floresta; mas o mosquito transmissor, o Anopheles darlingi, não vive na floresta e sim próximo a comunidades humanas”, argumenta. “Por isso, o atlas deveria optar também por círculos de concentração nessas localidades. Nesse sentido, o Ministério da Saúde elabora mapas mais detalhados sobre a situação brasileira.”
Silva destaca a grande relação do mosquito com a ocupação humana e a degradação ambiental. “A destruição da floresta cria áreas alagáveis, grandes criadouros para anófeles”, diz. E acrescenta: “Em Porto Velho, por exemplo, um dos dois municípios com maior incidência de malária no país, há cerca de 35 km2 de áreas ribeirinhas alagáveis ao longo do rio Madeira e, em determinadas épocas do ano, registramos taxas de até 100 picadas por pessoa por noite”.
Considerada uma doença negligenciada, a malária afeta principalmente países pobres e recebe pouco investimento em pesquisa, que em geral tem como alvo o P. falciparum. Nesse contexto, Silva destaca a importância do atlas para chamar a atenção do mundo para o P. vivax.
“Por ser menos virulenta, havia um pensamento de que essa espécie não seria um problema tão grande, mas é impossível pensar em erradicar a malária sem considerá-la”, analisa. “Em países como Brasil e Colômbia, já realizamos muitas pesquisas com o P. vivax, mas é preciso mais grupos, mais investimento e mais conhecimento.”
Marcelo Garcia
Ciência Hoje On-line