Vamos falar de neuroética?

Quando se fala em ética na biologia, todos pensam logo em clones, células-tronco e organismos geneticamente modificados. No entanto, os avanços recentes da neurociência suscitam questionamentos éticos importantes que não vêm sendo apropriadamente discutidos. Chamar a atenção para a negligenciada neuroética foi o objetivo de uma conferência feita na reunião anual da SBPC por Roberto Lent, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e colunista da CH On-line .

Vulcano acorrentando Prometeu , tela de 1623 pintada pelo holandês Dirck van Baburen (o original está no Rijksmuseum, em Amsterdã). Segundo conta a mitologia grega, Prometeu foi punido por querer recriar artificialmente a vida humana.

Lent evocou o mito de Prometeu – titã grego que quis dar vida a um boneco de barro e que, por sua petulância, foi condenado por Zeus a ser acorrentado ao topo do monte Cáucaso, onde teria seu fígado comido todos os dias por um abutre ao longo de milhares de anos. Para Lent, a ousadia de Prometeu ressurge em alguns trabalhos da neurociência contemporânea, que está cada vez mais próxima de recriar artificialmente algumas funções da mente humana.

Os mecanismos moleculares da memória, por exemplo, são hoje bastante conhecidos, o que abre as portas para a produção de medicamentos que venham a aprimorar essa faculdade. Os problemas surgem quando se pensa em como receitar esses fármacos. É razoável imaginar que as “pílulas da memória” sejam indicadas a portadores do mal de Alzheimer e pessoas idosas, de forma preventiva. Mas elas poderiam ser tomadas por estudantes nas vésperas de prova? E por trabalhadores que dependem da memória para exercer suas funções, ou por qualquer um que queira melhorar sua performance nesse quesito?

Questionamentos parecidos surgem quando se pensa na interface computador-cérebro, cada vez mais próxima da realidade. Roberto Lent apresentou em sua coluna de junho avanços recentes da neurociência que têm permitido decodificar a atividade neural responsável pelos movimentos e usá-la para comandar dispositivos robóticos. No futuro, é possível – e plenamente justificável – que tenhamos dispositivos inteligentes como braços mecânicos e cadeiras-de-rodas comandados pelo próprio cérebro do usuário. Mas como avaliar outros usos de pequenos chips ou nano computadores no cérebro? Seria correto usá-los para aprimorar a performance de atletas ou artistas, por exemplo?

Na avaliação de Lent, reside justamente aí o dilema ético fundamental a ser discutido na aplicação das novas tecnologias derivadas da neurociência: é difícil definir a fronteira entre o uso dessas tecnologias para tratar uma pessoa doente, que é eticamente justificável, de uma utilização que pretenda apenas aprimorar um indivíduo normal, mais discutível.

O que mais preocupa Lent é o fato de a neurociência estar caminhando mais rapidamente do que as discussões éticas sobre as novas portas que ela começa a abrir. “Neste século 21, os Frankensteins estão se tornando realidade”, avalia o neurocientista, referindo-se a uma outra criatura da ficção comparada com Prometeu. “Não estamos discutindo neuroética: as tecnologias que estão surgindo estão muito na frente dessa discussão e este é o principal problema.”

Bernardo Esteves
Ciência Hoje On-line
19/07/2006