Vida de ébrio

Apesar de ingerir grande quantidade de álcool, o musaranho-arborícola Ptilocercus lowii, que tem tamanho semelhante ao de um rato e pesa apenas 47 gramas, não apresenta qualquer problema de coordenação motora ou outros sinais de embriaguez (foto: Annette Zitzmann).

Em tempos de lei seca, que tem feito com que muitos motoristas brasileiros abdiquem da cerveja nos bares, cientistas estrangeiros acabam de descobrir que um pequeno mamífero costuma passar suas noites tomando elevadas doses de um néctar alcoólico produzido por uma palmeira. Mas, ao contrário dos humanos, o animal não demonstra sinais de embriaguez, apesar da alta concentração de álcool no sangue.

O beberrão, no caso, é a espécie de musaranho-arborícola Ptilocercus lowii, mamífero placentário do tamanho de um rato e originário de florestas do sudeste asiático. Em seus passeios noturnos para alimentação, ele passa mais de duas horas bebendo o néctar das flores da palmeira Eugeissona tristis – mais tempo do que gasta para se alimentar de qualquer outra fonte.

Os pesquisadores, liderados pelos biólogos alemães Frank Wiens e Annette Zitzmann, da Universidade de Bayreuth (Alemanha), registraram no néctar dessa palmeira um teor alcoólico máximo de 3,8%, concentração comparável à da cerveja e uma das mais altas já encontradas em alimentos naturais. Essa característica deve-se à disposição de suas flores e ao fato de elas abrigarem diversas espécies de leveduras – várias delas desconhecidas da ciência –, que promovem a fermentação do material.

“Durante a produção de néctar, as inflorescências liberam um forte cheiro alcoólico que lembra o de uma cervejaria”, comparam os cientistas no artigo que relata a descoberta, publicado na PNAS desta semana. Por cerca de um mês e meio até a maturação do pólen, o néctar da palmeira escorre de suas flores – que brotam o ano inteiro e atingem de 1 a 3 m de altura.

Os pesquisadores filmaram o musaranho-arborícola P. lowii se alimentando regularmente à noite nas flores de uma palmeira cujo néctar tem alto teor alcoólico. Clique para ver o vídeo (crédito: National Academy of Sciences/ PNAS).

Para os pesquisadores, essa estratégia da palmeira tem provavelmente o objetivo de assegurar a visitação de potenciais polinizadores, como P. lowii. Durante a pesquisa, realizada em uma floresta tropical no oeste da Malásia, a equipe descobriu outras seis espécies de pequenos mamíferos que visitam e bebem regularmente néctar alcoólico das flores da E. tristis.

Consumo elevado e freqüente
Segundo Wiens, o musaranho-arborícola P. lowii consome o equivalente a mais de dois litros e meio de cerveja ou cerca de nove chopps a cada três noites. “Trata-se do primeiro registro de consumo crônico de álcool em um animal selvagem”, diz o biólogo à CH On-line. A análise dos pêlos do animal confirmou a elevada ingestão de álcool.

Apesar de consumir uma quantidade de álcool capaz de deixar um homem embriagado, o P. lowii, com seu peso de apenas 47 gramas, não apresenta qualquer problema de coordenação motora ou outros sinais de que estaria alcoolizado. “Acreditamos que esses animais tenham um mecanismo mais eficiente para desativar o álcool ingerido”, supõe Wiens. Segundo ele, mesmo a concentração média de álcool encontrada no néctar da palmeira – que é de 0,6%, já que, uma vez liberado, o néctar perde rapidamente seu teor alcoólico – está dentro da faixa conhecida por alterar respostas comportamentais em humanos.

O primata Nycticebus coucang também foi flagrado ao consumir álcool freqüentemente na palmeira Eugeissona tristis, mas em quantidades que parecem menores que as do  P. lowii. Clique para assistir ao vídeo (crédito: National Academy of Sciences/ PNAS).

A descoberta sugere que a ingestão crônica de altas doses de álcool já ocorria precocemente na evolução dos primatas, contrariando a hipótese de que esse hábito teria surgido com o início da fabricação da cerveja, há 9 mil anos. Os musaranhos-arborícolas são os parentes vivos mais próximos dos primatas e acredita-se que sejam muito parecidos com os ancestrais extintos desse grupo que viveram há 55 milhões de anos. “Nossos resultados sustentam a visão de que a atração dos humanos por álcool não se desenvolveu por acaso. Ela pode ser um traço evolutivo”, acrescenta Wiens.

O pesquisador acredita que o consumo de álcool pode ter efeitos psicológicos positivos sobre os musaranhos-arborícolas, já que foi mantido durante a evolução. Mas ainda não se sabe quais são os reais benefícios de uma dieta rica em álcool para esses animais e como eles conseguem reduzir os riscos de permanecer com uma concentração alcoólica no sangue que seria perigosa para outros mamíferos.

“Estudar essas criaturas fascinantes é uma oportunidade de ouro para aprender sobre as causas e conseqüências do ato de beber na vida real”, afirma Wiens. Para os pesquisadores, alguns mecanismos responsáveis por manter um balanço positivo e saudável no consumo de álcool podem ajudar no combate ao alcoolismo e outras patologias humanas relacionadas ao abuso dessa substância. 


Thaís Fernandes

Ciência Hoje On-line
28/07/2008