Agente de controle

Questão que há tempos intrigava cientistas da área biológica foi explicada recentemente por uma dupla de brasileiros que trabalha no Instituto de Pesquisa Scripps, em La Jolla, Califórnia, nos Estados Unidos. 

O bioquímico Claudio Joazeiro e seu aluno de pós-doutorado Mário Bengston descobriram uma peça essencial para o entendimento do controle de qualidade no processo de produção de proteínas: a listerina.

Sem a listerina, as células eucarióticas (que têm núcleo distinto, envolvido por membrana nuclear) são incapazes de identificar e destruir proteínas aberrantes recém-fabricadas no organismo.

A consequência dessa falha aparentemente simples é catastrófica: acúmulo de agregados proteicos tóxicos para a célula, capazes de levá-las à morte. Se acrescentarmos a esse cenário o fator tempo, digamos 50 ou 60 anos, e um tipo celular particularmente sensível – o neurônio –, o resultado é uma doença neurodegenerativa.

Cerca de 20% a 30% das proteínas de mamíferos são degradadas rapidamente logo após sua síntese caso não tenham adquirido conformação espacial correta ou tenham apresentado algum problema durante o processo conhecido como tradução.

“O que descobrimos é que a listerina se encarrega de eliminar proteínas sintetizadas a partir de um RNA mensageiro truncado, ou seja, que não apresenta sinal de parada”, explica Bengston.

“O que descobrimos é que a listerina se encarrega de eliminar proteínas sintetizadas a partir de um RNA mensageiro truncado”

Os RNA mensageiros trazem a ‘receita’ de cada proteína do DNA para o ribossomo, que usa a informação para produzir essas pequenas máquinas moleculares. A receita tem uma linguagem própria, que indica onde a leitura deve começar e onde deve parar.

Quando o ribossomo recebe uma mensagem sem sinal de parada, ele a interpreta como truncada, com fim precoce. Esse produto inacabado pode ser prejudicial à célula se não for capaz de desempenhar corretamente sua função.

“Nosso modelo sugere que no momento em que o ribossomo atinge o final da mensagem sem encontrar sinal de parada, ele recruta a listerina, que adiciona então uma cadeia de ubiquitina à proteína recém-sintetizada”, conta Bengston.

A marcação com ubiquitina é uma sentença de morte. Essa etiqueta química indica que a proteína marcada deve ser destruída, a fim de proteger a célula do dano que ela poderia causar.

O funcionamento desse requintado mecanismo de controle de qualidade proteico já era conhecido em bactérias, nas quais opera de forma ligeiramente diferente. No entanto, as moléculas responsáveis pelo processo em células eucarióticas ainda intrigavam os pesquisadores. Até que a equipe de Joazeiro – do Instituto de Pesquisa Scripps, em La Jolla (EUA) – flagrasse a listerina no ato.

Neurônios degenerados

Os experimentos iniciais foram feitos em organismos mais simples. Bengston observou que, na ausência da listerina, leveduras cresciam normalmente em condições padrão. Mas, na presença de antibióticos (quando a terminação da tradução é bloqueada), o crescimento era fortemente inibido.

O passo seguinte foi testar o efeito da supressão ou mutação do gene responsável pela produção da listerina em camundongos. Isso feito, a dupla de brasileiros observou que a supressão completa da função da listerina leva o indivíduo à morte durante o desenvolvimento embrionário (embriogênese).

No caso de mutação no gene, a atividade residual da proteína parece ser suficiente para que a embriogênese ocorra naturalmente. “Mas, com o tempo, o acúmulo de substratos não degradados pode desencadear um processo neurodegenerativo”, diz Bengston. Nos camundongos, por exemplo, surge uma doença semelhante à esclerose lateral amiotrófica.

Mutações desse tipo, que atenuam em vez de inativar por completo a expressão de um gene, são comuns em doenças humanas, o que explica por que as doenças neurodegenerativas são progressivas e têm início tardio. Os sintomas dependem do fator tempo para se tornar expressivos.

Neurônio na região do hipocampo
Micrografia de um neurônio na região do hipocampo. A listerina está presente em todas as células do organismo humano, mas sua ausência afeta principalmente o sistema nervoso e pode levar ao desenvolvimento de doenças neurodegenerativas. (imagem: MethoxyRoxy/ CC BY-SA 2.5)

Terapia genérica ou específica?

Se a listerina está presente em todos os tecidos, por que, quando sua função fica comprometida, o sistema nervoso é o órgão mais afetado do organismo?

Segundo Bengston, uma hipótese para explicar o fenômeno é que o neurônio, por apresentar exigências muito específicas – como transportar moléculas através de longos axônios, sensíveis a agregados proteicos –, seria mais vulnerável a esses agregados.

Ainda não está claro o que funcionaria melhor: se uma terapia genérica ou específica para cada doença

O acúmulo de agregados intraneuronais, constituídos por proteínas defeituosas, é uma característica comum a várias doenças neurodegenerativas, tais como Parkinson, esclerose lateral amiotrófica, Alzheimer e Huntington. Isso sugere que, embora tenham etiologias diferentes, essas doenças possuem um mesmo mecanismo patológico.

Bengston – que trabalha há cinco anos na equipe de Joazeiro e pretende continuar essa linha de pesquisa no Brasil – conta que várias empresas e pesquisadores têm procurado desenvolver terapias eficazes contra essas doenças. Mas por enquanto ainda não está claro o que funcionaria melhor: se uma terapia genérica ou específica para cada doença. 


Sofia Pereira
Especial para CH On-line/ PR