Ainda é cedo ou tarde demais?

Se tivesse chegado aos mesmos resultados há alguns anos, é provável que a pesquisa publicada ontem (15/05) nas páginas da revista Cell rendesse o prêmio Nobel ao seu autor principal, o especialista em biologia reprodutiva Shoukhrat Mitalipov, da Universidade de Ciência e Saúde do Oregon, Estados Unidos. O artigo apresenta uma metodologia pioneira para clonagem terapêutica de embriões humanos, que pode ser importante para o desenvolvimento de novos tratamentos para diversas doenças graves como Parkinson, esclerose múltipla e problemas cardíacos. 

Perseguido por muito tempo pela ciência, o feito acaba um pouco ofuscado pelo sucesso de outro recente método alternativo de obtenção de células-tronco pluripotentes humanas

Perseguido por muito tempo pela ciência, o feito acaba um pouco ofuscado, no entanto, pelo sucesso de outro recente método alternativo de obtenção de células-tronco pluripotentes humanas – que de fato rendeu o Nobel de Medicina de 2012 ao japonês Shinya Yamanaka

Os futuros estudos com a nova metodologia podem, porém, mostrar sua aplicabilidade em outros campos e, talvez, apontá-la como uma melhor alternativa terapêutica em determinados casos, a depender da capacidade de reprodução do processo e das características das células-tronco geradas.  

Para chegar aos resultados recém-apresentados, Mitalipov trabalhou por anos com a clonagem de células embrionárias de macacos rhesus – sendo o primeiro a clonar embriões da espécie, em 2007.

A técnica utilizada no estudo atual é bem semelhante à que permitiu a clonagem da ovelha Dolly, em 1996, e de diversas outras espécies de animais desde então. Nela, o núcleo de uma célula adulta (ou seja, especializada) do indivíduo a ser ‘clonado’ é introduzido em um óvulo do qual o núcleo foi removido. 

Relembre a história da clonagem da ovelha Dolly, gerada no já longínquo ano de 1996

Mas, diferentemente do que ocorreu no caso da Dolly, em que o embrião se desenvolveu para gerar um outro indivíduo, os embriões criados no estudo liderado por Mitalipov se desenvolveram até a fase de blastocisto, quando as células-tronco foram colhidas para criar linhas celulares estáveis, compatíveis com o ser ‘clonado’ (doadores das células especializadas) e capazes de se diferenciarem nos mais diversos tecidos celulares.  

Apesar de o método da transferência nuclear já ser antigo conhecido, ninguém havia obtido até agora sucesso com sua aplicação em células humanas

A pesquisa utilizou óvulos de voluntárias – que, de acordo com reportagem publicada na seção de notícias da Nature, receberam entre três e sete mil dólares pela doação – e células epiteliais de fetos e de crianças com síndrome de Leigh. A equipe comprovou, em testes in vitro, o potencial para a conversão das células-tronco geradas em células nervosas, do fígado, cardíacas, entre outros tipos.

Apesar de o método da transferência nuclear já ser antigo conhecido, ninguém havia obtido até agora sucesso com sua aplicação em células humanas, em geral porque o desenvolvimento do embrião estagnava antes de formar o blastocisto – estágio em que é possível retirar as células-tronco desejadas. 

“A ciência ainda não compreende bem todos os fatores envolvidos nesse processo, tanto que clonamos ovelhas e bois antes de conseguirmos clonar camundongos”, pondera a geneticista Lygia da Veiga Pereira, da Universidade de São Paulo (USP). “O processo é ainda mais complexo em humanos, também pela dificuldade de obtermos óvulos para experiências nas quantidades disponíveis de outros animais.”

Macacos, cafeína e clones

O sucesso da equipe de Mitalipov é explicado por algumas alterações feitas ao método ‘tradicional’. Entre elas, destacam-se a utilização de um vírus inativado para facilitar a introdução do núcleo no óvulo, o uso de um choque elétrico e a introdução de cafeína (isso mesmo, cafeína!) no meio de cultura, para preservar o desenvolvimento embrionário – uma combinação de sucesso, fruto do prolongado trabalho com macacos. 

Além do resultado inédito, o estudo ainda registrou uma eficiência impressionante do novo procedimento: “Pensava-se que, para realizar uma SCNT [transferência nuclear de células somáticas] humana seriam necessárias muitas centenas de óvulos”, explica Mitalipov, em comunicado à imprensa. No entanto, a equipe conseguiu produzir, a partir de 60 embriões, seis linhagens estáveis de células-tronco.  

Doença de Alzheimer
A utilização de células-tronco é uma das principais apostas da ciência para o desenvolvimento de terapias contra diversos tipos de doenças, como a síndrome de Down e a doença de Alzheimer. (foto: Rosie O’Beirne / Flickr – CC BY-NC-ND 2.0)

Além da eficácia, Lygia da Veiga Pereira também destaca a possibilidade de aplicar a abordagem de Mitalipov em outras áreas. “O trabalho é muito bonito e impressiona pela eficiência da metodologia, que abre possibilidades para outras aplicações”, afirma. “Por exemplo, pode ser muito útil para aprimorar a clonagem de animais de interesse comercial, como bovinos, ou para tornar mais eficiente o processo de fertilização in vitro”, acredita.

Apesar de Mitalipov negar diversas vezes a intenção – e até a possibilidade – de produzir um clone humano por meio do método que empregou, a polêmica persiste

No entanto, o experimento também é um prato cheio para os dilemas éticos e religiosos. Uma vez que os embriões gerados são destruídos na obtenção das linhagens de células-tronco, a pesquisa já é alvo de críticas de grupos religiosos nos Estados Unidos. Por outro lado, apesar de Mitalipov negar diversas vezes a intenção – e até a possibilidade – de produzir um clone humano por meio do método que empregou, a polêmica persiste. “De fato, no estudo, os embriões foram desenvolvidos até a fase de blastocisto; é difícil saber se poderiam ser levados adiante, mas também não há nada que indique que não poderiam”, comenta Pereira. 

Vale destacar que, no Brasil, essa pesquisa seria inviável – nossa lei de biossegurança proíbe qualquer tipo de clonagem humana – terapêutica e reprodutiva. Para o estudo de terapias com células-tronco embrionárias, os pesquisadores brasileiros devem optar pelas células de embriões ‘originais’ – seguindo as restrições da lei – ou pelas geradas com o método do laureado Yamanaka, as células-tronco pluripotentes induzidas (iPS, na sigla em inglês).  

Um empoeirado Santo Graal 

Em 2004, o sul-coreano Hwang Woo-Suk afirmou ter desenvolvido uma metodologia eficaz para clonagem embrionária humana – caso que se tornou uma das maiores fraudes da história recente da ciência, justamente quando a busca por esse processo estava no auge. Desde então, a área perdeu muito de seu brilho pela obtenção das iPS, a partir de uma metodologia capaz de reprogramar células maduras e especializadas para dar origem a qualquer tipo de tecido. 

Relembre, no vídeo abaixo, o caso Woo-suk

Pela maior facilidade do processo de reprogramação – em relação à transferência nuclear – e por deixar de lado questões éticas, o desenvolvimento das iPS fez muitos laboratórios alterarem suas pesquisas. “Nesse sentido, a não ser que o novo processo mostre alguma vantagem em relação às iPS, a descoberta é quase uma curiosidade”, avalia Pereira. No entanto, para Robin Lovell-Badge, do Instituto Nacional de Pesquisas Médicas da Inglaterra, o trabalho “traz de volta a questão da clonagem terapêutica humana para o reino da boa ciência no lugar da controvérsia”, afirmou ao jornal britânico The Guardian

Apesar do potencial das iPS, elas ainda envolvem riscos – como mutações e anomalias – que podem dificultar ou mesmo impedir sua utilização em algumas terapias. “Temos observado recentemente um acúmulo de mutações maior do que o esperado nos sequenciamentos genéticos das iPS e os trabalhos futuros mostrarão se o novo método pode ser melhor por não apresentar esse tipo de problema”, analisa a geneticista. 

“De qualquer forma, o objetivo final é que possamos produzir tecidos específicos e funcionais com aplicação clínica, o que ainda não é possível com qualquer método”, conclui Pereira.

Clique aqui para ler o texto que a Ciência Hoje das Crianças preparou sobre esse assunto.


Marcelo Garcia

Ciência Hoje On-line