Alcorão com sotaque brasileiro

Vem de São Paulo a boa nova para quem deseja saber mais sobre a religião muçulmana no Brasil: acaba de ser aprovada em Medina, na Arábia Saudita, a primeira tradução oficial para o português do Alcorão, o livro sagrado do islamismo. O autor da versão é o professor aposentado Helmir Nasr, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Universidade de São Paulo (USP).

Um livro, 114 capítulos, 6342 versículos, 77.930 palavras e 323.670 letras. Assim é o Alcorão, preservado palavra por palavra desde que, por volta do ano de 622, teria sido ditado ao profeta Maomé. Escrito em árabe e passado de geração para geração nessa língua, que se mantém até hoje viva, tornou-se o pilar da fé muçulmana.

O Alcorão teve tradução autorizada para 40 idiomas, fora as milhares de outras versões baseadas na livre interpretação. Apesar disso, cerca de 27 mil brasileiros não tinham muito que comemorar. Sem uma versão autorizada da obra em português, os seguidores do islamismo no Brasil liam o texto original ou recorriam a uma das oito edições em português traduzidas de versões francesas e inglesas.

“A idéia da tradução do árabe para o português surgiu em 1982, por sugestão do embaixador da Arábia Saudita”, conta Helmir Nasr. “Reunimos então um grupo de 10 pessoas para realizar o trabalho, que levou quatro anos.”

Mas não bastava traduzir. Para que uma versão estrangeira do Alcorão seja reconhecida como oficial, deve ser aprovada pelo Complexo Rei Fahd. Localizado em Medina, esse órgão é responsável por garantir que o texto sagrado não será deturpado. Tanto cuidado explica a demora desde a data de conclusão (1988) e a publicação, autorizada somente 15 anos depois.

Nesse intervalo, o professor teve de ir à cidade diversas vezes para acompanhar o trabalho dos revisores, ao mesmo tempo que preparava comentários para a versão brasileira. “Eles fazem parte do Alcorão e, até agora, as versões publicadas em português não os continham”, diz, enquanto aponta outro problema com as traduções publicadas no Brasil. “Sete das oito versões eram feitas por não islâmicos que, por isso, não sabiam completamente o que traduziam.”

Outra característica das versões autorizadas em Medina é que são sempre bilíngües, ou seja, o texto em árabe vem de um lado da página e o da língua local em outra. O interessante é que o Complexo não apenas banca a revisão da tradução, como imprime todo o livro.

E não são apenas os brasileiros que comemoram. Segundo o professor, autoridades muçulmanas portuguesas já o procuraram para que se adapte a versão brasileira da obra ao português lusitano. Estudiosos do islamismo também terão na tradução de Nasr uma importante fonte de referência. “Ela certamente vai inspirar a publicação de novos livros baseados no Alcorão”, diz.

Agora, é aguardar a publicação chegar por aqui — o que deve ocorrer no início de 2004. Uma espera pequena, perto da demora para a aprovação da tradução, mas que tem sido suficiente para deixar os muçulmanos ansiosos.

Rafael Barros
Ciência Hoje On-line
21/11/03