Ameaça escondida

O tratamento existe, mas a tuberculose ainda infecta cerca de dois bilhões de pessoas pelo mundo e acarreta 1,7 milhão de mortes por ano, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). Estudo liderado por um brasileiro ajuda a entender por que a doença é tão resistente: mesmo após tratamento, a bactéria da tuberculose pode ficar escondida por anos na medula óssea e possivelmente voltar à atividade, provocando o reaparecimento dos sintomas. 

A constatação foi feita depois de inúmeros testes em laboratório com culturas de células humanas de medula e camundongos infectados com a doença e depois tratados. Também foram conduzidos estudos clínicos com seis pacientes indianos sem sintomas e supostamente curados com antibióticos. Em todos os casos, a equipe de pesquisadores observou a presença da bactéria Mycobacterium tuberculosis (bacilo de Koch) nas células-tronco da medula óssea. 

Essas células funcionam como o esconderijo ideal para a bactéria, pois são quase invisíveis para o sistema de defesa do corpo. O imunologista líder do estudo Antônio Campos-Neto, do laboratório norte-americano Forsyth, explica que as principais células do sistema imune, os linfócitos e macrófagos, não têm acesso às células da medula. Estas, por sua vez, não possuem em sua superfície as moléculas necessárias para ativar o mecanismo de defesa. 

As células-tronco funcionam como esconderijo ideal para a bactéria, pois são quase invisíveis para o sistema de defesa do corpo 

Além disso, as células-tronco da medula têm a capacidade de impedir a entrada de medicamentos em seu interior, o que explicaria o fato de, mesmo tendo passado pelo tratamento com antibióticos, os pacientes ainda apresentarem o bacilo. 

“A adaptação evolucionária da bactéria da tuberculose com as células-tronco humanas exemplifica um relacionamento perfeito entre um micróbio e seu hospedeiro”, comenta Campos-Neto sobre o estudo publicado esta semana na revista Science Translational Medicine.

Sorrateira e traiçoeira

Atualmente, o tratamento da tuberculose é feito a base de antibióticos administrados por cerca de seis meses. Mas mesmo quem segue a terapia à risca pode voltar a desenvolver a doença. Os pesquisadores acreditam que a presença da bactéria na medula possa explicar parte dessa reincidência, que chega a 40% dos casos no norte da Índia, onde os estudos clínicos foram feitos.

Eles sugerem que a bactéria possa ficar em estado latente nas células-tronco da medula e voltar à atividade durante uma queda de imunidade. Também é possível que o bacilo fique hospedado nas células de quem teve contato com a doença e não chegou a desenvolver sintomas.

Células-tronco da medula
As células-tronco da medula óssea são o esconderijo perfeito para a bactéria da tuberculose. (foto: Bob Galindo/ Wikimedia Commons)

O biólogo molecular Paulo Redner, do Centro de Referência Professor Hélio Fraga da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), acredita na possibilidade, mas lembra que existem outras explicações para as reincidências. 

“Já existia a ideia de que pudesse haver sítios de dormência onde a bactéria ficaria escondida, mas a reincidência também é atribuída a novas exposições ao bacilo e ao abandono ou à inconstância no tratamento”, diz. “Por ser um tratamento muito longo, não é raro que a pessoa não tome os antibióticos conforme recomendado e os sintomas voltem.”

O médico Bikul Das, da Universidade de Stanford (EUA) e coautor da pesquisa, ressalta que mais estudos são necessários para saber também se a bactéria da tuberculose se esconde na medula de todos os doentes ou só em alguns casos. 

A descoberta deixa ainda dúvidas sobre a segurança dos transplantes de medula óssea nos casos em que o doador já teve tuberculose

A descoberta deixa ainda dúvidas sobre a segurança dos transplantes de medula óssea nos casos em que o doador já teve tuberculose. “Existe uma grande chance de que a tuberculose latente nas células-tronco possa ser passada para outra pessoa durante um transplante, mas temos que considerar também que o transplante envolve uma forte reação imune que pode matar a bactéria”, diz Das.
 

Novas estratégias

Campos-Neto acredita que a pesquisa abre perspectiva para tratamentos mais eficazes que mirem as bactérias escondidas na medula óssea.  “As novas estratégias de desenvolvimento de novas drogas para tratar tuberculose precisam não somente combater diretamente a bactéria, mas iludir os mecanismos de exclusão de drogas que as células-tronco possuem”, comenta. 

Outro autor da pesquisa, o médico Dean Fesher, da Universidade de Stanford, conta que já foi iniciado um estudo para saber como a bactéria se instala nas células da medula. A compreensão desse mecanismo pode ajudar no desenvolvimento de novos medicamentos.

Tratamentos mais eficazes viriam a calhar no Brasil que, segundo a OMS, é o único país das Américas a figurar entre os 22 responsáveis por 80% dos casos de tuberculose no mundo. Aqui, 71 mil novos casos da doença são registrados a cada ano.

Paulo Redner alerta, porém, que, por enquanto, o estudo não tem efeitos na prática médica. “Os testes de tuberculose disponíveis hoje se baseiam na análise do escarro e não são capazes de detectar a presença da bactéria dormente nas células-tronco”, comenta. “Para detectar a bactéria dormente na medula seria preciso uma biópsia, um procedimento invasivo. Então o mais indicado ainda é acompanhar o paciente.”

Sofia Moutinho
Ciência Hoje On-line