Dox poderia ter sido uma anã branca típica, como as cerca de 40 mil delas conhecidas. Mas algo misterioso ocorreu em seu passado, tornando-a única. Uma trilha sonora para sua vida bem que poderia ser ‘Space oddity’ (‘Estranheza espacial’), do brilhante cantor e compositor pop britânico David Bowie (1947-2016).
Apesar de ser ‘miúda’, seu peso (massa) e seu tamanho (raio) até que estão dentro dos padrões para uma anã branca: cerca de 0,6 massa solar e um raio semelhante ao da Terra. Essas duas características fazem das anãs brancas objetos cósmicos de alta densidade e temperatura.
A peculiaridade em relação a Dox – cujo nome científico é SDSS J124043.01+ 671034.68 – é o fato de ser ela a única, até este momento, a ter uma atmosfera basicamente de oxigênio. Isso é tão estranho que desafia as teorias de formação estelar conhecidas. Cerca de 80% das anãs brancas têm atmosfera de hidrogênio, e os 20% restantes, de hélio. A espessura da atmosfera de uma anã branca costuma ser de um décimo do raio da estrela; portanto, algo em torno de 600 km, mas com massa menor que um centésimo da massa da estrela.
Nessas estrelas compactas, os elementos mais pesados (tipicamente, oxigênio e carbono) ficam retidos no núcleo da estrela, por conta da gravidade, e os mais leves (hidrogênio e hélio) migram até a superfície, por um processo conhecido como difusão. Portanto, não pode haver, na composição de Dox, nem hidrogênio, nem hélio, nem carbono, pois são todos mais leves que o oxigênio.
Dox foi descoberta pelo astrônomo Kepler Oliveira, do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e por Detlev Koester, da Universidade de Kiel (Alemanha). E pelo bolsista de iniciação científica Gustavo Ourique, que começa a carreira de pesquisador em alto estilo, com artigo em um dos periódicos mais prestigiosos do planeta (Science, 01/05/16).
Excentricidade a mais
Há mais excentricidades em Dox: sua atmosfera tem traços de neônio, magnésio e silício. E é justamente este último elemento químico que pode revelar algo sobre o passa- do peculiar de Dox. Vejamos.
A maioria das estrelas do universo ‘queima’ hidrogênio, fundindo núcleos desse elemento para produzir os de hélio. É esse processo de fusão que gera luz e calor. Quando o combustível acaba, as estrelas tornam-se moribundas. E aí, dependendo de sua massa, elas podem se transformar em um desses dois novos objetos: i) uma estrela que explodirá e lançará ao espaço suas camadas externas, em um fenômeno conhecido como supernova; ii) em uma estrela que expulsará suas camadas externas e deixará em seu centro uma anã branca, ou seja, objeto pequeno, denso e sem muito brilho – neste último caso, a estrela precisaria ter massa entre oito e 11 massas solares.
A presença de silício em Dox é uma evidência de que ela pode ter tido uma genitora diferente dessas aí acima. Em comentário elogioso sobre a descoberta, na mesma edição da Science, o astrônomo Boris Gänsicke, da Universidade de Warwick (Reino Unido), diz que esse elemento químico pode ser um indicativo de que a ‘mãe’ de Dox já estava ‘queimando’ elementos mais pesados que o hidrogênio (oxigênio, por exemplo). Mas há um ‘porém’ com essa hipótese: a estrela-filha, nesse caso, deveria ser de nêutrons – e não uma anã branca.
Há uma segunda possibilidade para explicar o silício: Dox é resultado da fusão de duas estrelas que giravam uma em torno da outra. Na colisão, as duas atmosferas interagiram, e o produto final teria perdido massa, para se tornar uma anã branca.
Modelos até preveem a existência de anãs brancas com atmosferas de oxigênio, neônio e magnésio, mas elas são muito mais pesadas que Dox. “Precisamos calcular modelos que resultem em uma estrela de baixa massa e com envelope de oxigênio, o que nenhum modelo atual prevê”, escreveu Gänsicke.
O fato é que a origem de Dox ainda é misteriosa. E sua formação tão singular que, talvez, esteja, de alguma forma ainda desconhecida, relacionada com a descoberta recente de novos tipos de supernova, como sugere Gänsicke.
Com a ajuda do telescópio Hubble, os três autores vão seguir nas investigações dessa estranha anã branca. A ideia é refinar os resultados e ver se há traços de enxofre e fósforo na atmosfera de Dox. Se houver, então, isso dará a certeza de que a mãe de Dox queimou oxigênio.
A escondida
Sai de cena Dox, e entra, no palco, com seus mistérios, Abell 14, nebulosa planetária a mais de 10 mil anos-luz da Terra, ou seja, se pudéssemos viajar à velocidade da luz no vácuo (300 mil km/s), levaríamos aqueles milhares de anos para chegar lá – Dox está a cerca de 1,2 mil anos-luz de nós.
Abel, 14, nebulosa planetária que abriga uma estrela
gigante azul e, como descoberto agora, uma
anã branca. (imagem cedida pelos pesquisadores)
Conhecidas por suas cores intensas e formas exóticas, as nebulosas planetárias também representam o fim da vida de estrelas, quando o principal combustível delas (hidrogênio) se esgota, e ventos estelares expulsam os gases das camadas mais externas desse corpo cósmico. O resultado final será uma anã branca.
Nosso Sol terá esse destino: daqui a 5 bilhões de anos, deixará para trás uma anã branca e uma nuvem esférica de gases em torno da estrela. Abell 14, no entanto, é bipolar, ou seja, é uma nebulosa com dois polos bem definidos. Ou seja, não é esférica.
O mistério de Abell 14 é que a anã branca responsável por sua criação não havia sido detectada até hoje. Apenas sua companheira, uma estrela gigante azul, era visível, mas esse tipo de es- trela é incapaz de criar nebulosas planetárias e, somente, a interação entre ambas (gigante e anã branca) seria capaz de gerar a estrutura bipolar observada. Além disso, havia certas características (grau de ionização) dos gases dessa nebulosa que não podiam ser explicados pela presença da gigante azul.
Agora, Stavros Akras e Denise Gonçalves, astrônomos da Universidade Federal do Rio de Janeiro, apresentaram uma solução para o mistério abelliano: com base em simulações computacionais e observações feitas em telescópios na Grécia e no México, eles mostraram que há, em Abell 14, uma anã branca escondida. E ela não pôde ser detectada até agora por conta da luminosidade da companheira azul gigante, que, além de pesada e massiva, é muito brilhante.
Os resultados dos pesquisadores do Observatório do Valongo, da UFRJ, explicam, por exemplo, por que os gases em Abell 14 são muito mais quentes (ionizados): anãs brancas podem atingir cerca de 100 mil graus, enquanto gigantes azuis só chegariam a 30 mil.
Segundo os astrônomos da UFRJ – que assinam, com colegas europeus, artigo na Monthly Notes of the Royal Astronomical Society (fevereiro de 2016) –, Abell 14 está morrendo: com seus 20 mil anos de existência, é uma nebulosa velha, e os gases em torno dela irão se dissipar para o espaço. Restarão, em seu centro, a anã branca ‘envergonhada’ e sua companheira gigante. Uma delas viverá para quase todo o sempre: uma anã branca leva cerca de 1 trilhão de anos para ‘se apagar’ e se tornar uma anã negra.
Cássio Leite Vieira
Instituto Ciência Hoje/ RJ