Anestesia seletiva para dor

 

Estudo realizado por cientistas norte-americanos pode dar origem a uma anestesia local capaz de inibir a dor sem causar paralisia ou prejudicar outras sensações do paciente. Testes feitos em ratos mostraram que a injeção da mistura de um derivado do anestésico lidocaína e a substância capsaicina, ingrediente responsável pelo ardor da pimenta, bloqueia seletivamente a atividade dos neurônios associados à transmissão da sensação de dor sem afetar outros neurônios sensoriais ou motores, diferentemente do que ocorre com as anestesias usadas atualmente.

Os anestésicos atuais interferem na ação de todos os neurônios e geram efeitos colaterais como paralisia temporária e dormência. Seus componentes conseguem penetrar através das membranas das células sem passar pelos canais de sódio presentes em sua superfície, que controlam a entrada e saída de moléculas. Uma vez dentro dos neurônios, os anestésicos paralisam a ação desses canais de sódio, que têm papel importante na transmissão do impulso elétrico no sistema nervoso.

O novo anestésico se aproveita de uma propriedade especial da molécula QX-314, um derivado inativo da lidocaína: sua incapacidade de penetrar nas membranas celulares dos neurônios para paralisar sua atividade. Se for inserida nas células, porém, essa molécula consegue bloquear os canais de sódio. Os autores do estudo, pesquisadores do Hospital Geral de Massachusetts e da Escola de Medicina Harvard, nos Estados Unidos, decidiram então usar uma substância que facilitasse a entrada dessas moléculas apenas nos neurônios da dor. A resposta estava na capsaicina, capaz de abrir os canais de sódio TRPV1, específicos desses neurônios.

A estratégia permite a entrada da molécula QX-314 nos neurônios seníveis da dor, que ficam impedidos de mandar sinais para o cérebro devido ao bloqueio de seus canais de sódio. Em contrapartida, a droga permanece fora dos outros tipos de neurônios que não têm os canais TRPV1, o que permite que eles mantenham sua habilidade de enviar e receber sinais. “A anestesia local produzida por esse mecanismo não tem as deficiências motoras que acompanham a anestesia local convencional”, destacam os autores no artigo que descreve a novidade, publicado na Nature desta semana.

Resultados bem-sucedidos
Após comprovar em testes in vitro que a mistura de capsaicina e QX-314 bloqueia quase totalmente os fluxos de sódio apenas nos neurônios da dor, os pesquisadores aplicaram as substâncias nas patas posteriores de ratos. Após duas horas, nenhum animal reagiu a estímulos de calor nocivo, efeito que durou por cerca de duas horas. Depois, a mistura foi injetada nas proximidades do nervo ciático dos animais. O efeito anestésico começou após 15 minutos para estímulos mecânicos dolorosos e após 30 minutos para estímulos térmicos nocivos e se estendeu por 90 minutos.

Segundo os cientistas, apesar de os ratos parecerem imunes à dor, eles continuaram a se mover normalmente e a responder a outros estímulos, o que indica que a QX-314 não penetrou nos neurônios motores. “Essa estratégia pode ser vantajosa para gerar uma anestesia local específica para a dor quando a preservação das respostas motoras e autônomas e das sensações não dolorosas é desejável, como em partos e alguns procedimentos dentários, e no tratamento de dor crônica”, avaliam os autores. O método também poderia promover também a passagem de outras drogas através dos canais de sódio.

Para que o novo anestésico seja aplicado na medicina, no entanto, ainda é necessário superar alguns obstáculos. A equipe precisa demonstrar se os canais de sódio TRPV1 respondem da mesma forma à capsaicina em humanos, além de buscar a formulação ideal da mistura para prolongar o efeito da droga e evitar riscos provocados por doses excessivas.

Thaís Fernandes
Ciência Hoje On-line
04/10/2007

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